2020 foi um ano atípico para todos. Mas muitas realidades seguem constantes, diversos problemas sociais se agravaram e se esconderam diante das questões de saúde mundial. Neste contexto, o ensaio feito em Março no Abrigo Cristo Redentor, em Jaboatão dos Guararapes, foi, para mim, um prelúdio do que iria acontecer em maior e menor escala durante a pandemia causada pelo Corona Vírus. Os 115 idosos que vivem na maior instituição de longa permanência de Pernambuco sentiram os efeitos desta mudança em pouco tempo, sobretudo na ausência. Falta de recursos que já eram poucos. Interdição das visitas que só chegavam para cerca de 20% deles. Pouca vida a frente, muito medo do fim.
Falava-se muito de falta de leitos de UTI, dos índices de contágio, dos grupos de risco. Mas parte da parcela da população mais ameaçada pela COVID-19, os idosos do Cristo Redentor seguiam sem condições de ter distanciamento entre eles, nem condições mínimas de vida: comida, higiene. 90% das doações habituais sumiram, foram soterradas por causas mais estrondeantes. Assim como, mais adiante, nossos fantasmas emocionais foram se manifestando nos meses de isolamento, as sombras da solidão tomaram conta do Lar. Mesmo com toda a atenção dos cuidadores, o silêncio passou a falar alto, comprovando a falta dos poucos familiares, dos muitos voluntários, dos escassos recursos. Por outro lado, o que se viu – e se vê no desenrolar da pandemia – é um olhar para o outro mais aguçado. Se valer dos que estão presentes, ajudar o próximo na medida do possível, cuidar e se deixar ser cuidado. Muitos dos moradores passaram a cuidar uns dos outros. A lacuna virou ponte.
Isso foi o que mais me marcou neste contato. A potência da crise, a possibilidade de ver luz na escuridão, de tirar aprendizados positivos de contextos caóticos. Resiliência, esperança. Escolhi, então, traduzir este sentimento através de um alto contraste entre luz e sombra, destacando o isolamento nos retratos, mostrando apenas indivíduos envoltos na sombra, mas sempre com pequenos vislumbres de esperança: os adesivos coloridos da páscoa, o sorriso aberto, a freira, as enfermeiras. Apesar do ambiente sombrio, também achei interessante brincar com a sombra dos retratados, indicando a companhia de si mesmo, mostrando uma presença ausente. Este trabalho significou muito para mim também no âmbito individual, sobretudo porque foi o único ensaio sobre a pandemia que fiz. Como meu filho nasceu em Maio, fiquei alguns meses afastado do jornal para evitar o contágio no fim da gravidez e nos primeiros meses de vida dele. Isso nunca havia acontecido em quase dez anos de carreira. Durante o tempo longe do cotidiano da redação, diante de todas as incertezas e sentimentos negativos que apareceram na minha vida e na de muitos, pensar no cuidado, no amor que senti entre os moradores e cuidadores do Abrigo me fizeram replicar estes sentimentos em casa, para com João Vicente. Na profissão de fotojornalista, estamos habituados à rapidez, à batalha por espaço, por melhores oportunidades, por registros únicos, pela nossa linguagem. Fui forçado a parar e acabei repensando toda a situação – não estava na rua fazendo uma cobertura histórica desta pandemia, mas estava cuidando dos meus. Assim como talvez doar para um abrigo não vá salvar o mundo do COVID, mas vai salvar vidas, vai possibilitar afetos, vai nos fazer sentir parte de algo maior.
Peu Ricardo é um fotojornalista que atua em Recife-PE, se destacando nas áreas de cotidiano, esportes e política. Formou-se bacharel em Comunicação Social com Ênfase em Fotografia em 2012, trabalha em jornais da cidade desde 2010. Venceu prêmios nacionais e regionais, com o destaque para dois troféus Cristina Tavares de Jornalismo. Atualmente é fotógrafo do Diário de Pernambuco e é colaborador da Agência Estadão Conteúdo.
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