Não é segredo pra ninguém as desigualdades que atravessam o Brasil nos tempos atuais. Estas, que são históricas e paulatinamente construídas em favor das elites econômicas e políticas, faz questão de imputar a diversos sujeitos o lugar da subalternidade social.
Essas desigualdades têm um marcador de raça, gênero e classe bem delimitados, definindo, de acordo com a noção de necropolítica do filósofo camaronês Achile Mbembe (2016), quem pode viver e quem deve morrer no exercício do poder, sobretudo Estatal/Institucional[1].
Existem algumas situações que ilustram as afirmações feitas acima. A primeira vítima fatal da pandemia da COVID-19 no estado do Rio de Janeiro ter sido uma empregada doméstica mulher negra, que foi infectada pela doença por seus patrões, brancos e ricos, que tinham chegado de viagem internacional. O menino João Pedro, de 14 anos, assassinado dentro se casa com um tiro disparado da arma de um policial em meio a uma operação policial na comunidade do Salgueiro, RJ. O menino Miguel, que caiu do prédio em Recife, devido a negligência de Sari Corte Real em observar o menino, enquanto sua mãe, empregada doméstica, passeava com o cachorro. Mas essa morte física do corpo não é a única forma de expressão dessa violência.
Pois bem. Há algumas semanas, estamos acompanhando no debate público o caso de Ângelo Assumpção – ginasta medalhista de ouro do Brasil na Copa do Mundo de Ginástica Artística, grande promessa para a futura geração de ginastas. Ângelo, ao denunciar que sofria racismo dentro do Clube Pinheiros, ao qual prestava serviços, foi demitido com algumas justificativas no mínimo curiosas. A primeira foi de não haver provas da consumação de tais práticas racistas dentro do clube praticada pelos atletas e equipe técnica, ainda que esteja circulando na internet um vídeo desde 2015, publicado em uma rede social, onde os ginastas Arthur Nory, Felipe Arawaka e Henrique Flores, direcionam à Assumpção palavras explicitamente racistas. A outra justificativa apresentada pelo clube para a demissão do ginasta, seria por ele não ter respeitado a hierarquia do clube, ainda que estivesse denunciando uma violência que atingia diretamente a sua subjetividade.
Racismo no esporte não é novidade, haja vista as vivências do goleiro Aranha, e mais recentemente do jogador Neymar – que finalmente conseguiu se localizar racialmente em uma sociedade que te faz acreditar que ascendendo economicamente, você perde a sua identidade racial. Bobagem. Ainda que rico, Neymar continua sendo um homem preto circulando por espaços racistas, seja na Europa ou no Brasil. Mas o caso específico do ginasta Angelo Assumpção nos permite refletir sobre alguns aspectos da sociedade brasileira em particular.
Em determinado momento histórico, onde se debatiam como construir a identidade cultural do Brasil enquanto nação, os intelectuais acharam que seria positivo apostar em uma ideia de uma democracia racial, de miscigenação entre as raças como algo natural. Ideia essa que já foi refutada academicamente, ressaltando a impossibilidade de uma harmonia entre os grupos que constroem o Brasil. Esse pais foi fundado na violência contra povos indígenas, contra africanos traficados e contra negros nascidos por aqui. Essa harmonia só existe na mente do branco! E é tão perceptível que essa harmonia só existe na mente do branco, que percebemos o presidente da república indo pra televisão, no discurso do dia 7 de setembro, reforçar algo que não existe na vivência dos diversos sujeitos.
Outro ponto interessante de se analisar neste caso, é como a branquitude consegue ignorar as provas concretas para proteger os indivíduos que fazem parte de seu grupo racial. O vídeo com as violências proferidas à Angelo circulam desde 2015. Alguns ginastas envolvidos no caso, chegaram a publicar um pedido de desculpas, reconhecendo suas atitudes racistas contra o atleta. Mas mesmo assim, o Clube Pinheiros insiste em afirmar que não há práticas racistas dentro de suas instalações. A branquitude se protege em todas as possibilidades. E por mais que, alguns sujeitos reconheçam sua experiência enquanto ser branco no Brasil, e tentem praticar um antirracismo no seu cotidiano, eles ainda continuam fazendo parte dessa branquitude que goza cotidianamente de diversas vantagens sociais. É o pacto narcisístico da branquitude.
O final que eles querem, nós já sabemos. Neymar foi expulso do jogo. Ângelo Assumpção está sem contrato, sobrevivendo através de uma vakinha virtual. Aranha perdeu espaço na mídia. Cleonice Gonçalves passou ao orum, para agora conviver com os ancestrais.
O final que eles querem, mas não vai ser o final oficial.
[1] É a soberania de decidir quem deve viver e quem deve morrer através do exercício de poder, sobretudo Estatal/institucional. Ver mais em: MBEMBE, Achile. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. Arte & Ensaios. Revista do PPGAV/EBA/UFRJ. N. 32. 2016
Luan Pedretti é mestrando em Educação pelo PPGE/UFJF, professor de História, integrante do Movimento Negro em Juiz de Fora pelo Coletivo Negro Resistência Viva e pela Frente Preta da UFJF.
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