Que do Poder Judiciário saem algumas bizarrices todos já sabem: venda de sentenças, operações de relevância nacional banhadas de ilegalidades, magistrados que criam as próprias leis… Mas se voltarmos nossa atenção diretamente para os casos em que as pré-compreensões e valores pessoais dos juízes superam a aplicação do direito, podemos perceber alguns padrões curiosos.
O tema pode ser abordado por vários recortes, e aqui escolhemos o seguinte: o Direito ainda é um ramo em que imperam conservadorismos, valores patriarcais e machistas. As consequências cotidianas dessas discriminações são drásticas, e não são um simples reflexo da sociedade como um todo, mas sim um panorama peculiar, que se esconde em discursos de uma falsa igualdade legal e de um cavalheirismo “necessário” para a preservação da moral e dos bons costumes.
Vejamos a prática: em 2000, Maitê Proença processou um jornal do Rio de Janeiro que utilizou suas fotos em uma publicação não autorizada. A autora pediu a reparação dos danos, já que as fotos foram tiradas em 1996 para uma revista masculina, e não para o jornal.
O julgamento na segunda instância ganhou repercussão nacional quando o relator negou o pedido de danos morais à atriz, alegando que ela era ‘bonita, e só mulheres feias podem se sentir constrangidas por terem seus corpos desnudos estampados em revistas e jornais’:
Fosse a autora u’a mulher feia, gorda, cheia de estrias, de celulite, de culote e de pelancas, a publicação da sua fotografia desnuda – ou quase – em jornal de grande circulação, certamente lhe acarretaria um grande vexame, muita humilhação, constrangimento enorme, sofrimento sem conta, a justificar – aí sim – seu pedido de indenização de dano moral, a lhe servir de lenitivo para o mal sofrido. Tratando-se, porém, de uma das mulheres mais lindas do Brasil, nada justifica pedido dessa natureza, exatamente pela inexistência, aqui, de dano moral a ser indenizado.
Já em 2007, o jogador Richarlyson se sentiu ofendido com uma fala homofóbica proferida pelo então diretor administrativo do Palmeiras e procurou a justiça. A sentença configurou mais um caso de extrapolação do papel do magistrado, que apresentou argumentos preconceituosos, proposições infundadas e linguagem inapropriada.
Para o juiz a queixa não tinha fundamento, e se o jogador fosse realmente homossexual:
[…] seria melhor abandonar os gramados, pois futebol é jogo viril, varonil, não homossexual. Gays até podem jogar bola, desde que iniciem suas próprias Federações! […] Não se mostra razoável homossexual no futebol brasileiro, porque prejudicaria a uniformidade de pensamento da equipe, o entrosamento, o equilíbrio […].
Os dois casos posteriormente tiveram as decisões reformadas, mas o que chama a atenção em ambos é justamente o traço discriminatório cada vez mais evidente em nossa realidade. O que observamos especificamente nos exemplos é o sexismo, que se baseia, inicialmente, na ideia do homem como superior à mulher, tal qual ocorre no machismo, mas se diferencia por ir além: é um tipo de discriminação que define quais costumes e atitudes devem ser seguidos e respeitados por cada sexo, como o modo de se vestir, ou se portar socialmente.
A sociedade como um todo adota essas atitudes de maneira automática. Sempre educamos as crianças de forma a reproduzir comportamentos e modelos binários, por exemplo, com as ideias de que um menino não pode brincar de boneca, e que uma mulher ideal deve ser boa esposa ou mãe.
Alguns leitores agora podem questionar se essas decisões homofóbicas, machistas e misóginas ainda são comuns, já que os casos mencionados não são tão recentes. Os episódios continuam sim ocorrendo e aparecem ainda mais graves, pois não obstante a força dos movimentos sociais mais recentes, o cenário político do Brasil não facilita a ruptura das antigas ideologias.
Em 2015, por exemplo, a escritora e atriz Fernanda Young processou o usuário de uma rede social que a chamou de “vadia lésbica” e a ofendeu com vários termos chulos. O juiz acolheu o pedido, mas definiu que o valor dos danos morais não deveria ser superior a R$5.000,00, pois a atriz teria uma “reputação elástica”.
Para chegar a esse valor, ele ainda considerou que a autora posou nua, e que deveria mostrar mais respeito:
Ora, uma mulher com tantos predicados como a autora afirma possuir deveria demonstrar, porque formadora de opinião, uma pouco mais de respeito. Há valores morais que devem governar a sociedade e que, no mais das vezes, nos dias que correm, são ignorados em prestígio a uma pretensa relatividade aplicada às ciências sociais, geradora do caos atual. Disciplina, limites, ética, regras de convívio social devem retomar o posto de primazia na sociedade brasileira, relegando o desrespeito, o descaso, o egoísmo aos planos inferiores.
Em 2019 mais um caso veio à tona, e agora com uma juíza que fez duras críticas ao feminismo. Um estudante de medicina foi processado por fazer as calouras do curso jurarem a “sempre atender aos desejos sexuais dos veteranos e nunca recusar tentativas de coito”
O Ministério Público considerou que o estudante expôs as mulheres a uma situação opressora, e ofendeu a dignidade delas ao reforçar padrões de desigualdades de gênero, enquanto o requerido se defendeu alegando que não passava de uma brincadeira durante o “trote”. A juíza julgou improcedente a acusação, e afirmou que a denúncia retrata a panfletagem feminista que permeia o Brasil atual, movimento feminista esse que apenas colaborou com a degradação moral que vivemos.
Eis o problema central de nossa exposição: o que legitima um juiz a se afastar do Direito como complexo de integridade e atuar de forma claramente parcial, movido por convicções machistas, homofóbicas ou transfóbicas? E o que essa postura representa para o Estado Democrático?
É evidente que o Poder Judiciário vem utilizando argumentos morais e não técnicos em muitos julgamentos, e isso só reforça um cenário que precisa ser alterado. É curioso que o ambiente forense ainda não acompanhe os anseios sociais mais urgentes, e sabemos que se a Justiça tarda é porque ela já falhou.
Os discursos que tantos movimentos tentam desconstruir estão sendo referendados pela esfera que, teoricamente, deveria assegurar igualdade, dignidade e respeito a todos os indivíduos, acima de questões de gênero, ou traços de personalidade, escolhas e atitudes pessoais. Por isso, é essencial que haja repúdio e afronta a essas decisões, e que elas sejam expostas, denunciadas e reformadas, até que os responsáveis pela aplicação da lei entendam que não há mais espaço para o passado.
Lutar pela mudança e buscar um ideal de igualdade que respeite as diferenças são deveres árduos, contínuos, e que não devem se limitar ao espaço da internet, à luta por igualdade salarial, ou à criminalização de determinado comportamento. Tudo isso é certamente importante, mas devemos nos atentar para o cenário como um todo, pois a civilidade é um sistema, e só um conjunto de ações integradas promoverão a revolução que buscamos.
Lembremos-nos do que ensinou Angela Davis: “Você tem que agir como se fosse possível transformar radicalmente o mundo. E você tem que fazer isso o tempo todo.”.
Que do Poder Judiciário saem algumas bizarrices todos já sabem: venda de sentenças, operações de relevância nacional banhadas de ilegalidades, magistrados que criam as próprias leis… Mas se voltarmos nossa atenção diretamente para os casos em que as pré-compreensões e valores pessoais dos juízes superam a aplicação do direito, podemos perceber alguns padrões curiosos.
O tema pode ser abordado por vários recortes, e aqui escolhemos o seguinte: o Direito ainda é um ramo em que imperam conservadorismos, valores patriarcais e machistas. As consequências cotidianas dessas discriminações são drásticas, e não são um simples reflexo da sociedade como um todo, mas sim um panorama peculiar, que se esconde em discursos de uma falsa igualdade legal e de um cavalheirismo “necessário” para a preservação da moral e dos bons costumes.
Vejamos a prática: em 2000, Maitê Proença processou um jornal do Rio de Janeiro que utilizou suas fotos em uma publicação não autorizada. A autora pediu a reparação dos danos, já que as fotos foram tiradas em 1996 para uma revista masculina, e não para o jornal.
O julgamento na segunda instância ganhou repercussão nacional quando o relator negou o pedido de danos morais à atriz, alegando que ela era ‘bonita, e só mulheres feias podem se sentir constrangidas por terem seus corpos desnudos estampados em revistas e jornais’:
Fosse a autora u’a mulher feia, gorda, cheia de estrias, de celulite, de culote e de pelancas, a publicação da sua fotografia desnuda – ou quase – em jornal de grande circulação, certamente lhe acarretaria um grande vexame, muita humilhação, constrangimento enorme, sofrimento sem conta, a justificar – aí sim – seu pedido de indenização de dano moral, a lhe servir de lenitivo para o mal sofrido. Tratando-se, porém, de uma das mulheres mais lindas do Brasil, nada justifica pedido dessa natureza, exatamente pela inexistência, aqui, de dano moral a ser indenizado.
Já em 2007, o jogador Richarlyson se sentiu ofendido com uma fala homofóbica proferida pelo então diretor administrativo do Palmeiras e procurou a justiça. A sentença configurou mais um caso de extrapolação do papel do magistrado, que apresentou argumentos preconceituosos, proposições infundadas e linguagem inapropriada.
Para o juiz a queixa não tinha fundamento, e se o jogador fosse realmente homossexual:
[…] seria melhor abandonar os gramados, pois futebol é jogo viril, varonil, não homossexual. Gays até podem jogar bola, desde que iniciem suas próprias Federações! […] Não se mostra razoável homossexual no futebol brasileiro, porque prejudicaria a uniformidade de pensamento da equipe, o entrosamento, o equilíbrio […].
Os dois casos posteriormente tiveram as decisões reformadas, mas o que chama a atenção em ambos é justamente o traço discriminatório cada vez mais evidente em nossa realidade. O que observamos especificamente nos exemplos é o sexismo, que se baseia, inicialmente, na ideia do homem como superior à mulher, tal qual ocorre no machismo, mas se diferencia por ir além: é um tipo de discriminação que define quais costumes e atitudes devem ser seguidos e respeitados por cada sexo, como o modo de se vestir, ou se portar socialmente.
A sociedade como um todo adota essas atitudes de maneira automática. Sempre educamos as crianças de forma a reproduzir comportamentos e modelos binários, por exemplo, com as ideias de que um menino não pode brincar de boneca, e que uma mulher ideal deve ser boa esposa ou mãe.
Alguns leitores agora podem questionar se essas decisões homofóbicas, machistas e misóginas ainda são comuns, já que os casos mencionados não são tão recentes. Os episódios continuam sim ocorrendo e aparecem ainda mais graves, pois não obstante a força dos movimentos sociais mais recentes, o cenário político do Brasil não facilita a ruptura das antigas ideologias.
Em 2015, por exemplo, a escritora e atriz Fernanda Young processou o usuário de uma rede social que a chamou de “vadia lésbica” e a ofendeu com vários termos chulos. O juiz acolheu o pedido, mas definiu que o valor dos danos morais não deveria ser superior a R$5.000,00, pois a atriz teria uma “reputação elástica”.
Para chegar a esse valor, ele ainda considerou que a autora posou nua, e que deveria mostrar mais respeito:
Ora, uma mulher com tantos predicados como a autora afirma possuir deveria demonstrar, porque formadora de opinião, uma pouco mais de respeito. Há valores morais que devem governar a sociedade e que, no mais das vezes, nos dias que correm, são ignorados em prestígio a uma pretensa relatividade aplicada às ciências sociais, geradora do caos atual. Disciplina, limites, ética, regras de convívio social devem retomar o posto de primazia na sociedade brasileira, relegando o desrespeito, o descaso, o egoísmo aos planos inferiores.
Em 2019 mais um caso veio à tona, e agora com uma juíza que fez duras críticas ao feminismo. Um estudante de medicina foi processado por fazer as calouras do curso jurarem a “sempre atender aos desejos sexuais dos veteranos e nunca recusar tentativas de coito”
O Ministério Público considerou que o estudante expôs as mulheres a uma situação opressora, e ofendeu a dignidade delas ao reforçar padrões de desigualdades de gênero, enquanto o requerido se defendeu alegando que não passava de uma brincadeira durante o “trote”. A juíza julgou improcedente a acusação, e afirmou que a denúncia retrata a panfletagem feminista que permeia o Brasil atual, movimento feminista esse que apenas colaborou com a degradação moral que vivemos.
Eis o problema central de nossa exposição: o que legitima um juiz a se afastar do Direito como complexo de integridade e atuar de forma claramente parcial, movido por convicções machistas, homofóbicas ou transfóbicas? E o que essa postura representa para o Estado Democrático?
É evidente que o Poder Judiciário vem utilizando argumentos morais e não técnicos em muitos julgamentos, e isso só reforça um cenário que precisa ser alterado. É revoltante que o ambiente forense ainda não acompanhe os anseios sociais mais urgentes, e sabemos que se a Justiça tarda é porque ela já falhou.
Os discursos que tantos movimentos tentam desconstruir estão sendo referendados pela esfera que, teoricamente, deveria assegurar igualdade, dignidade e respeito a todos os indivíduos, acima de questões de gênero, ou traços de personalidade, escolhas e atitudes pessoais. Por isso, é essencial que haja repúdio e afronta a essas decisões, e que elas sejam expostas, denunciadas e reformadas, até que os responsáveis pela aplicação da lei entendam que não há mais espaço para o passado.
Lutar pela mudança e buscar um ideal de igualdade que respeite as diferenças são deveres árduos, contínuos, e que não devem se limitar ao espaço da internet, à luta por igualdade salarial, ou à criminalização de determinado comportamento. Tudo isso é certamente importante, mas devemos nos atentar para o cenário como um todo, pois a civilidade é um sistema, e só um conjunto de ações integradas promoverão a revolução que buscamos.
Lembremos-nos do que ensinou Angela Davis: “Você tem que agir como se fosse possível transformar radicalmente o mundo. E você tem que fazer isso o tempo todo.”.
REFERÊNCIAS
CONJUR. Juiz nega ação de Rycharlison e diz que futebol é para macho. Publicado em: 03/08/2007. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2007-ago03/juiz_nega_acao_jogador_futebol_macho>.
MASCARELLI, Gisele. As mulheres no campo do direito: retratos de um machismo à brasileira. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. p. 64-88. 2016. Disponível em: <file:///C:/Users/Usuario/Downloads/40411-Texto%20do%20artigo-186448-1 10-20181002.pdf>.
UOL. Machismo, sexismo e misoginia: quais são as diferenças?. Publicado em: 03/12/2018. Disponível em: <https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2018/12/03/machismo sexismo-e-misoginia-quais-sao-as-diferencas.htm>.
VEJA. Em sentença, juíza de SP diz que feminismo promoveu ‘degradação moral’. Publicado em: 07/11/2019. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/brasil/em-sentenca-juiza-de-sp-diz-que-feminismo promoveu-degradacao-moral/>.
VEJA. Fernanda Young tem indenização reduzida por ter posado nua. Publicado em: 09/06/2017. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/cultura/fernanda-young-tem-indenizacao-reduzida-por ter-posado-nua/>.
Déborah Silva é pós graduanda em Direito Constitucional.
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Não bastasse o fato de a moralidade já trazer em si um abjeto conceito estético, sexista, econômico e discriminatório atrelado à institucionalização histórica da opressão e da violência, o Judiciário brasileiro faz questão de escancarar sua antijuridicidade pelo desrespeito flagrante ao neoconstitucionalismo, à força vinculativa dos direitos fundamentais e à segurança jurídica, valendo-se, para tanto, dos expedientes mais chulos do senso comum, num teatro de grosseiro suicídio filosófico coercitivamente consentido. Um direito patriarcal, religioso e incompetente – uma ética seletiva, neurótica, hipócrita e condescendente. BRILHANTE artigo!
Parabéns pela matéria. Tema extremamente necessário, precisamos de um judiciário imparcial.
Não bastasse o fato de a moralidade já trazer em si um abjeto conceito estético, sexista, econômico e discriminatório atrelado à institucionalização histórica da opressão e da violência, o Judiciário brasileiro faz questão de escancarar sua antijuridicidade pelo desrespeito flagrante ao neoconstitucionalismo, à força vinculativa dos direitos fundamentais e à segurança jurídica, valendo-se, para tanto, dos expedientes mais chulos do senso comum, num teatro de grosseiro suicídio filosófico coercitivamente consentido. Um direito patriarcal, religioso e incompetente – uma ética seletiva, neurótica, hipócrita e condescendente. BRILHANTE artigo!
Texto ótimo Déborah, em essência, o discurso do judiciário é também um reflexo do discurso predominante na sociedade. As sementes de 2020, já estavam lá atrás, nos pequenos detalhes.
Que texto excelente! Muito importante poder ler e compreender, a partir de exemplos concretos, como tais questões são tratadas. Obrigada por isso, Deborah!
As mudanças certamente não ocorrerem na velocidade desejada, mas fico com Erundina quando ela diz que “O sonho tem de ser tão grande que não cabe na sua vida”.
Excelente texto!! Infelizmente o juiz parcial é realidade antiga! Hoje mais do que nunca é necessário jogar luz nesses casos para que possamos acabar com as injustiças cometidas em nome da “moral” e dos “bons costumes”.
Excelente texto, Deborah! O tema é muito relevante e ainda pouco discutido. Parabéns pela exposição e por ter utilizado de exemplos tão claros.
O patriarcado opera em todas as esferas de poder.Excelente artigo!