É como diz a canção de Clara Nunes: “Ninguém ouviu um soluçar de dor no canto do Brasil. Um lamento triste sempre ecoou, desde que o índio guerreiro foi pro cativeiro e de lá cantou”. A luta indígena pela preservação de suas culturas, terras e sobrevivência em geral persiste há séculos. Não são raros os casos da história em que ficaram evidentes atitudes genocidas por parte do Estado, o que levou, em determinado momento, a uma luta intensa dos povos originários por seus direitos fundamentais.
Depois do período ditatorial no qual se promoveu um massacre velado de centenas de vítimas por governantes, militares, madeireiros, fazendeiros e tantos outros, a Constituição de 1988 veio como a renovação da esperança, assegurando aos povos indígenas o direito a suas culturas, organizações próprias e, em resumo, um modelo não mais pautado na visão integracionista e meramente assistencialista, como previa o Estatuto do índio de 1973.
Ao lado da proteção territorial, um dos mais importantes assuntos é o direito à saúde. Este deve ser prestado em atenção às especificidades socioculturais desses povos, por estar ligado à proteção da terra sagrada, além de garantir a perpetuação dos indígenas, o respeito à dignidade e autonomia.
O “Subsistema de Atenção à Saúde Indígena” é diretamente ligado ao SUS – Sistema Único de Saúde – que completou 30 anos no dia 19/09 deste ano. Inicialmente, a adoção da política nacional de saúde indígena, em plena conformidade com a Constituição, tentou abandonar concepções antiquadas a respeito da identidade indígena, além de implementar um ponto de vista diferenciado de atenção às comunidades.
Mas, não obstante a existência de diversas leis, o número de notícias e ações judiciais envolvendo a precariedade na prestação desse serviço essencial é alto, o que torna preocupante o futuro e a dignidade desses povos.
Os problemas são muitos. O que as comunidades vivenciam na prática são: má utilização dos recursos financeiros; altos índices de mortalidade infantil; propagação rápida de epidemias graves; falta de saneamento básico; e muitos casos de desassistência dos poderes públicos.
Tem ocorrido um verdadeiro retrocesso na saúde, principalmente no que diz respeito às ações de prevenção e no acesso a tratamentos mais duradouros e elaborados. As ações de vacinação são frágeis, bem como a capacitação de agentes, o controle de dados, sem mencionar que algumas comunidades vivem sem água potável, recorrendo a casas de saúde sem medicamentos, com infraestrutura totalmente precária. Como se não bastasse, vem ocorrendo a diminuição e até a suspensão no repasse de recursos financeiros para os Distritos Sanitários por parte do governo federal.
Recentemente, as populações indígenas lidam com a expansão do Coronavírus: até o momento, conforme dados da APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, são 158 povos atingidos, 33.412 indígenas confirmados e 828 indígenas falecidos. Já se sabe que questões imunológicas, o compartilhamento de utensílios domésticos e a dificuldade geográfica de atendimento em saúde são fatores que contribuem para a expansão da doença, e, ainda assim, não há movimentação do governo para amenizar esse cenário caótico.
Fato é que não há uma política orgânica, que respeite a Constituição e permita que os povos indígenas recebam uma atenção diferenciada, eficaz e respeitosa para com seus modelos e concepções de cura. Existe um cenário de descontinuidade na saúde indigenista extremamente maléfico. A não renovação de convênios, o esvaziamento de unidades gestoras, falta do repasse de verbas, mudanças estruturais, ausência de participação dos povos nas decisões, a insegurança legislativa com alterações constantes de portarias e decretos, tudo isso colabora com a decadência e o desmanche do sistema de direitos fundamentais.
A partir disso, surge a questão: a Constituição de 1988 foi suficiente em garantir aos povos indígenas a saúde universal que foi estruturada aos demais? Ora, se saúde enquanto garantia de vida digna não é implantada ou alcançada pelo Estado brasileiro aos povos indígenas, significa que estamos em uma moldura democrática que não compreende a todos: uma cidadania cujo sujeito abstrato não compreende os povos originários.
O Brasil, mesmo com a Constituição Cidadã, não trouxe a ruptura necessária que incluísse todos os grupos na execução prática dos direitos fundamentais, e verificamos isso com a saúde: o país com o único sistema de saúde pública do mundo que atende mais de 190 milhões de pessoas e tem como princípios básicos a integralidade, a igualdade e a universalidade, se mantém praticamente inerte em cuidados mínimos com os indígenas durante a pandemia.
Um dos grandes desafios para a efetivação do direito à saúde no Brasil é justamente o de desenvolver a democracia sanitária no país, a partir de um sistema capaz de garantir a participação da sociedade na tomada das decisões estratégicas em saúde. Para tanto, precisamos criar e consolidar instituições e processos juridicamente regulados que possibilitem a participação efetiva de toda a sociedade nas decisões desse tema. Por isso, para Sérgio Arouca, “democracia é saúde e saúde é democracia”.
Uma democracia e seus valores são colocados à prova em um momento como o que vivemos. Há um desafio entre os princípios de desenvolvimento, dignidade, e a própria preservação da vida. Por isso é relevante que nosso pacto social seja reavaliado, sobretudo como projeto de alcançar as condições básicas de existência e bem-estar também para as minorias.
Por muito tempo, acreditamos que a pauta indígena não era uma questão para o governo e que o cenário era de uma constante omissão, mas erramos. Há em curso um verdadeiro plano anti-indígena, reconhecido por vários mecanismos internacionais como uma agenda genocida. Exemplo disso foram os vários vetos que o Presidente da República fez na Lei 14.021/2020, que dispõe sobre medidas de combate à Covid-19.
Se não lutamos e cobramos a efetivação dos direitos para todas as camadas, incorremos na falsa noção de que vivemos e construímos um Estado Democrático. Por isso, quando acharmos que a saúde indigenista não é um problema nosso, devemos nos lembrar constantemente de que o Brasil todo é terra indígena, e que é um dever coletivo preservarmos a história e a vida dos povos originários.
“Em tempos de pandemia a luta e a solidariedade coletiva que reacendeu no mundo só será completa com os povos indígenas, pois a cura estará não apenas no princípio ativo, mas no ativar de nossos princípios humanos.”
– Trecho da Carta Final da Assembleia de Resistência Indígena (09/05/2020).
REFERÊNCIAS
AITH, Fernando Mussa Abujamra. Direito à saúde e democracia sanitária: experiências brasileiras. R. Dir. sanit., São Paulo v.15 n.3, p. 85-90, nov. 2014/fev. 2015. Disponível em: < https://www.revistas.usp.br/rdisan/article/download/148138/141745/>.
APIB. A mãe terra enfrenta dias sombrios. Publicado em: 10/05/2020. Disponível em: <http://apib.info/2020/05/10/carta-final-da-assembleia-de-resiste%CC%82ncia-indigena/>.
CNN. Bolsonaro sanciona com vetos plano para combater Covid-19 em áreas indígenas. Publicado em 08/07/2020. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2020/07/08/bolsonaro-sanciona-com-vetos-plano-para-combater-covid-19-em-areas-indigenas.
DADOS COVID – APIB. Disponível em: <http://emergenciaindigena.apib.info/dados_covid19/>.
ECOA. Por que a covid-19 é perigosa para os povos indígenas? Por Priscila Tapajó. Publicado em: 15/04/2020. Disponível em: <https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/opiniao/2020/04/15/por-que-a-covid-19-e-perigosa-para-os-povos-indigenas.htm>.
USP. É urgente reafirmar que saúde é democracia. Por Ergon Cugler. Publicado em: 05/05/2020. Disponível em: <https://jornal.usp.br/artigos/e-urgente-reafirmar-que-saude-e-democracia/>.
Déborah Silva é pós graduanda em Direito Constitucional.
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Excelente destaque sobre uma parcela tão marginalizada da nossa sociedade. Abrir nossos olhos para situações como está mostra a fragilidade da nossa democracia e do nosso sistema constitucional.
Destaque incrível! Um assunto extremamente necessário de ser abordado, a maioria da população não sabe a dimensão dos problemas que acometem o povo indígena.
A saúde está a cada dia mais distante do povo: sucateamento do SUS, privatização da água, queimadas. Estão passando a boiada e os povos originários são visivelmente afetados.
Parabéns pelo texto e pela escolha do tema.
Um tema super atual e importante! Os povos originários sendo, mais uma vez, vivendo as fragilidades com maior intensidade. Obrigada pela abordagem, vamos continuar lutando por algo mais justo!
Tema mais que atual, mais uma vez, a pauta indígena sempre mereceu os olhos mais atentos do Estado e, na prática, o contrário é percebido.
Obrigado pelas informações absorvidas deste e já estou aguardando o próximo.