Fazia muito calor em outubro. Atipicamente, chovia pouco; o tempo estava seco, e a temperatura chegava perto dos quarenta graus. Um calor sem esperança que trazia na cabeça com detalhes a imagem de um inferno que queima sem consumir, que abafa sem sufocar e que aproxima os ensebados torsos que procuram pela brisa. Além do fogo no ar, tinha também os pernilongos e os mosquitos de luz.
Já faz dois anos não vejo as nuvens de tanajuras rua afora, brigando ou brincando de acasalar. São muitos prédios ao redor, pouca água e muita poça. Pernilongos dominam a primavera, fazendo um pouco mais difícil relaxar e se refrescar depois das dezoito horas.
Acordei no meio da madrugada. Estava pingando suor e, quando me mexia na cama, sentia que o Roberto estava escorrendo também. Tentei me aconchegar em seu peito, como gosto de dormir, mas ele estava gorduroso, amanteigado. Dormia o sono dos justos, dos bobos ou dos bêbados – tanto faz. Mesmo que já dormisse com ele desde julho, nos últimos dias minha impressão era a de que estava perto demais. Dormia como se estivesse no paraíso. Olhei o rosto comprimido no travesseiro, a boca torcida, o semblante de menino. O calor não era tanto pra ele, era para mim. Me sentei na cama, e ele respirou mais forte – quando me movo, é um hábito que ele respire fundo; mas o sono é pesado e ele logo se acostuma. Mesmo dormindo nua, me sentia prestes a derreter.
Dormimos de janela fechada por conta dos pernilongos. Se o quarto ficasse aberto, as chances de que nos carregassem ou bebessem a alma pelo canudinho eram reais. Nossa casa fica ao lado de um terreno não construído, com capim baixo – de onde nuvens desses irritantes sobem todas as noites que são quentes. Para dormir em paz, é preciso deixar a janela trancada; sem vento, sem mosquitos. O ar diminui; não consigo me sentar na janela e acender um cigarro como fiz muitas vezes. Protejo a mim e ao Roberto, ao mesmo tempo que me confino no quarto. Isso deve ser uma espécie de metáfora de vida. Nessa altura, o sono me deixou.
Ainda sentada, o meu quarto parecia estranho naquela penumbra. O espelho reflete um ensaio do cômodo, mas as roupas penduradas que aparecem ali não me parecem familiares. O altar que fiz no ano passado, no canto, na cabeceira da cama, está entulhado. Peças e peças se juntam sobre a mesa baixa; Lakshmi não conversa bem com Santa Bárbara, nem com as velas e os terços. É uma bagunça, ali. Não foi a primeira vez que senti, mas era bem forte naquela noite a impressão de que essas coisas estavam debochando de mim. As estátuas aproveitavam confortavelmente sua contemplação infinita, mas eu estava acordada, desassossegada, abafada. Meus patuás pareciam me dizer que abrisse a janela, que deixasse o vento entrar. Que eu fizesse isso: agora.
Levantei, mas o Beto não notou. Decidi tomar um banho e voltar a me deitar mais fresca. Fiquei não sei quanto tempo de pé olhando ele dormir. Ele não é bonito, é infantil. Às vezes, tenho a impressão de que é exatamente por isso que estou com ele até hoje: ele é fraco de diversas maneiras. O rosto magro e desarmônico em relação ao corpo, a barba rala. A felicidade que fica em dizer para os amigos que me tem e isso basta. Sou um teto na vida desse homem, sendo que nunca fui teto na de ninguém. Mais de uma vez, fui a outra, fui a louca, fui a reserva; e em nenhuma dessas vezes eu tive o que mostrar. Agora tenho. É porque esse homem é quase infantil que deixo ele me amar, e às vezes penso em deixar que faça um filho em mim. Quase me basta.
Na noite do dia anterior, antes de deitarmos, ele fez uma insinuação que não gostei. Um amigo de quem também não gosto, e que já foi um caso quando nós éramos adolescentes, disse ao Roberto que eu não era confiável o suficiente para vivermos juntos. Penso que um homem teria questionado o amigo, mas o Beto questionou foi a mim. “Você não é uma mulher de confiança”. Observando ele dormir, era quase como se as palavras continuassem sendo ditas em voz alta ali dentro. Como eu poderia não ser de confiança se ele estava tão desarmado na minha cama? Por que ele me trouxe essa notícia? Por que eu, e não ele, estava acordada no meio da madrugada?
Liguei o chuveiro no frio e fui deixando a água bater na nuca e nas costas. Mesmo assim, o banheiro se encheu de vapor. Não cheguei a pensar especificamente em alguma coisa, me vinham flashes no pensamento. Minha mãe, quando era mais nova, desenhava muito bem. Gostava de se arrumar e era expressiva. Com o tempo, isso foi se apagando de pouco em pouco, até que sumiu. Quando eu era pequena ainda me lembro de desenhar comigo, me ensinar a segurar o lápis do jeito certo e traçar uma linha reta sem régua. O segredo era olhar o ponto onde a linha terminava e não o traço em si. Às vezes, eu conseguia, outras não. Lembrei disso, mas quando a memória estava lá, ocupando minha cabeça, puxou outra. Minha mãe não desenha mais, não se produz mais. Ela usa remédios para dormir e desenvolveu compulsão pela limpeza da casa. Se está livre, passa pelos cômodos recolhendo as miudezas espalhadas. É um jeito que ela encontrou de ser. Mas eu não sei…
Olhando pra baixo, eu vi meus pés que obstruíam um pouco o curso da água na direção do ralo. Reparo nas minhas pernas, na tatuagem que fiz quando quase vivi um amor. Passar os pés acompanhando o rejunte do azulejo parece prazeroso, e foi o que comecei a fazer, brincando. Tapei como pude o ralo e a água parecia que iria transbordar. Quando abri caminho o volume seguiu para o buraco com força.
Meu pai traiu minha mãe várias vezes.
Revi histórias de quando eu era pequena. Conversas que eu não deveria ter escutado, e minha mãe chorando. Não sei exatamente como foi, mas suspeito. Os tios se envolveram, minha avó também. Lembrei de ver minha mãe definhando pela casa de dois cômodos em que nós morávamos. Ninguém deveria assistir sua própria mãe sofrendo assim. O que me espanta, hoje, é reconhecer que não senti raiva dele. Como eu poderia? Nós duas estávamos muito mais próximas, nós duas amávamos a ele, que, por sua vez, tinha outras namoradas fora de casa. Eu deveria ter sentido raiva do meu pai? Saber dessas coisas, na verdade, me fez querer ser como ele. Não sei o que isso significa, mas com oito anos eu já tinha certeza de que não existe o amor. Tive homens, mas eu era meu pai. Eu sou… Minha mãe deveria ter saído de casa? Quando ela ficou e deixou de desenhar, ela me deu o recado de um destino.
O pensamento saltou para os homens que tive na vida, mas não fez evoluções suficientes ali. Usei muitos deles, gozei alguns, amei dois. Isso foi rápido, porque depois de a água quente escorrer pelo cano do chuveiro, a que vinha da caixa era mais fria. Comecei a tremer. Na medida que a água continuava caindo, o tom moreno da pele roxeou; foi quando desliguei e me enrolei na toalha para voltar ao quarto. Estava seca de água, mas pingava de mim melancolia. Roberto dormia ainda. Ele dormia sempre. Além de me bajular como se eu fosse a melhor coisa que aconteceu naquela vidinha de bosta, o Beto continuava dormindo.
Continuava abafado, mas eu me sentia melhor. Deitei de novo, mas sem abraçá-lo. Reparava o teto, o espelho, o altar, a janela fechada, e tudo de novo, de novo, de novo. Não tive mais sono. Era desaforo viver daquele jeito, refém de pernilongo. Mas era só da janela aberta que eu tinha receio? Enquanto pensei assim Roberto resmungou alguma coisa que não entendi. Senti raiva dele por estar dormindo. Senti raiva que estivesse na minha cama pegajoso daquele jeito. Senti raiva porque ele duvidou de mim. Sentir ódio porque ele seria aquilo, daquele jeito, pelo resta da vida dele.
Taquicardia. Desconforto no limite. Curioso é que minha cabeça começou a me contar uma versão soft de minha própria vida. Culpa dos pais, dos professores, dos primeiros amores, do ex-marido, das mentiras que me contaram… Foi aí que eu ri para mim mesma. Eu sou como ele… Olhei no relógio a primeira vez desde que despertei, eram 05h17. Cutuquei o Roberto até que ele acordasse assustado.
“Vai lá, abre a janela pra mim, depois você volta e dorme mais.”
Vinícius Lara é psicanalista, historiador, fotógrafo amador e um apaixonado pelo absurdo
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