Mais um ano de eleições no Brasil e a discussão sobre a obrigatoriedade do voto, como sempre, reaparece. Já existem muitos materiais disponíveis sobre os argumentos de quem é a favor ou contra o voto obrigatório, então, além dessa análise, vamos trabalhar aqui com conceitos mais básicos que antecedem a confirmação de uma escolha nas urnas, e os motivos pelos quais votamos e devemos votar.
A primeira coisa que precisamos entender falando de eleições é o que elas representam para o nosso Estado. A Constituição prega que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, e isso significa que vivemos em uma democracia representativa.
Este modelo consiste na delegação do poder de decisão a algumas pessoas, sempre com base em alguns princípios, tais como: observância dos procedimentos constitucionais; igualdade de todos perante a lei; sufrágio universal; e mandatos eletivos com temporalidade definidas.
A valorização dessa democracia se dá pelo fato de que, quantitativamente, ela é capaz de permitir a participação de toda a sociedade, ao contrário do que acontecia na democracia direta grega, por exemplo, em que só os homens atenienses eram cidadãos capazes de opinar e decidir, enquanto o resto da população ficava de fora desse processo. Ainda, essa forma de representação facilita a tomada de decisões em um país grande como o nosso, já que aperfeiçoa o tempo das discussões e a logística sobre os temas.
Assim, o voto nada mais é que um dos mecanismos para se efetivar a soberania popular. Hoje em nosso país ele é universal, obrigatório para brasileiros entre 18 e 70 anos e facultativo para analfabetos e jovens entre 16 e 18 anos. Algumas de suas características são protegidas com maior rigidez, ou seja, são cláusulas pétreas, não podendo o voto deixar de ser direto, secreto, universal e periódico. A obrigatoriedade pode ser revista por emenda constitucional, mas por que deve ser assim?
Inicialmente, deve-se restar claro que o ato de votar é um dever e não só um direito, que se baseia na responsabilidade que cada cidadão tem para com a coletividade ao escolher seus mandatários. O eleitor é verdadeiro componente do órgão eleitoral, então o voto tem o caráter de uma função pública.
Além disso, o estágio democrático em que o país se encontra não é propício ao voto facultativo, já que grande parte da população ainda vive em estado de pobreza e tem baixo nível de escolaridade, fazendo com que muitos desconheçam alguns de seus direitos. A tendência é que o voto facultativo exclua das urnas essas camadas da sociedade, enquanto a obrigatoriedade seria um forte instrumento para manifestação da vontade política.
Outro argumento diz respeito ao caráter pedagógico do voto, pois mesmo não sendo anual, o resultado em longo prazo seria uma sociedade com cultura política mais forte, com hábito e interesse na informação e no pleito em geral. A participação constante no processo eleitoral tende a deixar o eleitor mais ativo socialmente.
Outro aspecto seria o nível de participação e legitimidades das eleições. Nunca aconteceu de mais de 50% do eleitorado se ausentar, e isso evita controversas acerca da credibilidade das instituições. Esse cenário é muito importante para democracias não totalmente consolidadas, com tendência à instabilidade político-institucional, como é o caso do Brasil, além de auxiliar a questão do custo-benefício.
Esses argumentos apontados até aqui são de natureza mais técnica, aqueles que vemos com maior frequência. Entretanto, se fizermos uma análise mais prática, uma verdadeira autocrítica, é possível perceber que o ato de votar é mais significativo do que parece.
A cada dois anos há um pedido para que as pessoas parem e reflitam sobre o que significa uma democracia representativa, e o que a lei de fato exige é o comparecimento, mas o voto em si pode ser nulo, branco ou em alguém. Isso significa que, se você está 100% insatisfeito com todos os candidatos na disputa, ninguém irá te obrigar a depositar confiança em algum deles.
Em uma democracia tudo que diz respeito à coletividade deve ter sim a participação de cada um individualmente, por uma preocupação com o todo. É o que acontece na vacinação obrigatória, por exemplo, a responsabilidade não é só para proteger a mim mesmo, mas o maior número de pessoas na minha cidade, no meu estado, e no país.
É notório que o processo não é necessariamente prazeroso e apresenta muitos problemas. Por vezes ouvimos ou dizemos que não há mais solução para o Brasil, ou que a política não funciona mais e por isso não nos interessa. Se já vivemos em um momento de extrema demonização política em razão da corrupção, perpetuar esses estigmas seria validar uma tentativa de isenção da nossa responsabilidade de mudar o que não está funcionando.
Em quantos pleitos eleitorais nós consultamos os planos de todos os candidatos? Quantas vezes fomos atrás dos projetos de leis e da história política deles? Ainda que de forma superficial, é inegável reconhecer quanto engajamento é possível produzir nos meses anteriores à eleição, desde conversas com os familiares até as pesquisas, toda essa bagagem anterior movimenta a democracia.
Cabe a nós uma consciência sobre o voto, uma consciência cívica que não é restrita pela obrigatoriedade. Pelo contrário, se enxergarmos o voto como instrumento de resistência e luta, vamos perceber como, a cada novo pleito eleitoral, podemos analisar em retrospecto o que nossos votos transformaram. E nossa educação política deve ser cotidiana, não só por nós, mas por todas as populações vulneráveis e marginalizadas que tanto dependem de vereadores, prefeitos, governadores bem preparados.
Nós já sabemos que as principais soluções para um país melhor estão na educação básica e em resolver os problemas da desigualdade socioeconômica, e é pensando nisso que devemos deliberar com a noção de que, naquele momento, o voto de todos tem o mesmo peso.
Nossa democracia tem 32 anos e nasceu de um período ditatorial em que as pessoas eram perseguidas, torturadas e mortas por darem suas opiniões. Hoje, não só podemos ser resistência, como podemos atacar as instituições que não estão em compatibilidade com o Estado Democrático de Direito. Por isso, usemos nosso voto e usemos com consciência, responsabilidade e principalmente motivação, sabendo que votar é um verdadeiro ato revolucionário.
REFERÊNCIAS
POLITIZE. Voto Facultativo. Disponível em: <https://www.politize.com.br/voto-facultativo/>.
SENADO. Vantagens e desvantagens do voto obrigatório e facultativo. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td-6-vantagens-e-desvantagens-do-voto-obrigatorio-e-do-voto-facultativo>.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: DF: Senado, 1988.
Déborah Silva é pós graduanda em Direito Constitucional.
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Infelizmente, nosso povo não tem real noção do poder que possui através do voto.
A questão do voto obrigatório é sensível, mas ainda se prova como um modo eficaz de incluir toda a sociedade, evitando a exclusão, por exemplo, dos mais pobres e periféricos. Excelente texto!
O povo é soberano e o voto é nossa arma mais poderosa! Muito importante abordar esse assunto!
Ótimo texto. Ao meu ver, o voto facultativo somente poderia ser considerado se precedido por invertimentos na educação básica, com ampliação dos estudos sociais.
Acredito que o caminho deve ser o contrário dos que querem o voto facultativo. Temos que conseguir que o povo vote ainda mais para que a burguesia consiga cada vez menos fazer o que é de seu interesse.
Mais uma vez me sentindo representada por um texto seu, Déborah! O voto é nossa grande ferramenta pra mudar tantas coisas que nos deixam insatisfeitos. Leitura super atual!
A compreensão da necessidade dos mecanismos garantidores da democracia passa pelo direito ao sufrágio universal, direto, secreto e obrigatório. Para longe dos discursos demagógicos de uma elite que deseja que o voto seja facultativo, pois, caso o fosse, ampliaria o abismo (já imenso) da exclusão social, indo além da econômica, transformando a grande massa da população trabalhadora em unidade amorfa e finalmente entregando o Estado a tiranos sequiosos da dominação sem limites que caracterizam as ditaduras e as oligarquias. Obrigado, Déborah, por nos esclarecer sobre a necessidade da obrigatoriedade do voto.
Excelentes argumentos! Mesmo dentro do mundo jurídico, confesso sempre ter encarado o voto obrigatório como uma imposição das oligarquias políticas; uma forma de coerção institucional, orientada no sentido de manutenção das estruturas de sujeição do Estado. É justamente essa insatisfação que predomina no inconsciente da nossa população – essa bile contra a categoria política como um todo, que nos impede de efetivamente encarar a Democracia como um direito que tanto nos custou historicamente para ser conquistado. A conscientização de classe e a promoção de um sentimento mais amadurecido de pertença são fundamentais para reestruturarmos nosso país e construirmos um futuro melhor. Que possamos de fato enxergar a participação eleitoral como um dever cidadão que, além de sua nobre responsabilidade, nos oportuniza autonomia e liberdade para traduzirmos materialmente nossos sonhos de um Brasil mais justo, próspero e constitucional. Mais um ÓTIMO artigo, Déborah! Pertinente, sóbrio e coerente. Convencido por todos os pontos tratados! Continue o excelente trabalho – seus textos são luz e esclarecimento a cada Domingo; fazem a diferença e contribuem para um mundo melhor. Parabéns!
O povo sem o voto não é o povo. Viva a Democracia e que saibamos gozar deste instituto tão importante.
Excelente texto, bastante explicativo e bem argumentado, além de muito convincente em relação a obrigatoriedade do voto!