O meteorito de Bendegó: a saga de um símbolo de resistência do Museu Nacional

A saga do Bendegó, o maior meteorito já encontrado em solo brasileiro, ganhou novos contornos, de epopeia e dramaticidade, após o trágico incêndio do Museu Nacional em setembro de 2018, tornando-se símbolo da resistência dessa renomada instituição.

Se o relatório de transferência da rocha do sertão baiano para o Rio de Janeiro já tinha importância científica e histórico-cultural, o incêndio viria reforçar a relevância deste documento, dando-lhe novos significados e dimensões. De tiragem limitada, um dos exemplares do relatório está preservado no acervo bibliográfico do Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora.

O Bendegó é o maior meteorito brasileiro conhecido até os dias atuais e o 16º maior meteorito já encontrado no mundo, pesando 5,36 toneladas, medindo 2,20 metros de comprimento. É do tipo siderito, composto basicamente por ferro e níquel.  Foi descoberto em 1784, pelo menino Domingos da Motta Botelho, sobre uma elevação próxima ao Rio Vaza Barris, a 48 km da cidade de Monte Santo e a 180 metros do riacho de Bendegó, que daria nome ao meteorito. O termo “bendegó” é de origem indígena e, na língua dos índios Kiriri, significa “pedra do céu” ou “vinda do céu”.

Logo após a localização do meteorito, em 1785, o governador D. Rodrigues Menezes ordenou o transporte da rocha até a capital Salvador, o que resultou na primeira tentativa de retirada da rocha, por uma equipe liderada pelo Capitão-mor de Itapicuru. No entanto, devido às dificuldades para o transporte em decorrência do seu peso, o meteorito caiu no leito rio Bendegó, onde permaneceu por mais de cem anos, e a empreitada foi abandonada. O fato foi comunicado ao Ministro de Estado de Portugal, ocasião em que foram enviados alguns fragmentos do material para a Coroa Portuguesa.

Em 1820, durante a expedição dos naturalistas alemães Spix e Martius, acompanhada de Domingos da Motta, foram extraídos mais alguns fragmentos do meteorito, que foram doados ao Museu de Munique. Em 1886, o Imperador D. Pedro II tomou conhecimento da história do Bendegó durante uma visita à Academia de Ciências de Paris, e se dispôs a providenciar o transporte da rocha para o Rio de Janeiro. A doação financeira que custeou o transporte foi feita pelo Barão de Guahy, Joaquim Elysio Pereira Marinho.

Com a disponibilização dos recursos para a transferência da rocha, a expedição teve início. Puxado por bois e deslizando sobre trilhos durante 126 dias, o meteorito percorreu 113 km até a Estação de Ferro Jacuricy.  Do sertão baiano, seguiu de trem para Salvador, onde ficou em exposição durante 5 dias, embarcando na locomotiva a vapor “Arlindo” em 1º de junho, a caminho de Recife e, posteriormente, para o Rio de Janeiro, onde foi recebido pela Princesa Isabel.

No local da “descoberta” do meteorito, foi construído o obelisco de D. Pedro II, em forma de pirâmide, com inscrições celebrativas que homenageavam o Imperador, a Princesa Isabel e outros personagens – incluindo os engenheiros responsáveis pela transferência do meteorito. Outro obelisco foi construído na estação ferroviária de Jacurici, o Obelisco de Bendegó, que celebrava o sucesso da empreitada de transferência da rocha.

Mas a retirada da rocha do seu local original gerou controvérsias, especialmente entre os sertanejos. O marco original de localização do meteorito, denominado D. Pedro II, foi destruído por moradores locais, que após um longo período de seca, interpretaram a estiagem como um castigo divino pela retirada da rocha espacial do seu local original. Mesmo que outro marco tenha sido construído, a transferência do meteorito de Bendegó continuou povoando o imaginário sertanejo, tanto que se tornou tema de literatura de cordel:

"A pedra constituída
De Ferro, Níquel e encanto.
Até o dia de hoje
Provoca tristeza e encanto
Queremos nossa pedra de volta
De volta pro nosso canto."

—A Saga da Pedra do Bendegó

A comissão responsável pela transferência do Meteorito de Bendegó da província da Bahia para o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, foi composta por José Carlos de Carvalho – Chefe da Comissão e ex-oficial da Marinha de Guerra Nacional, conforme informado no próprio relatório – e pelos engenheiros civis Humberto Saraiva Antunes e Vicente José de Carvalho. Desde então, o meteorito permaneceu em exposição no Rio de Janeiro, no Museu Nacional.

Já de posse do Museu Nacional, o Meteorito de Bendegó sofreu um corte de aproximadamente 60 kg, e seus fragmentos foram enviados a 14 museus do mundo, entre eles os Museus de Londres, Berlim e Viena. Ainda foram produzidas quatro réplicas da rocha, em tamanho real. A primeira, em madeira, figurou na Exposição Universal de Paris em 1889, por ocasião das comemorações do centenário da Revolução Francesa, e está atualmente no Museu Nacional de História Natural, em Paris. A segunda réplica, em gesso, feita na década de 1970, está no Museu do Sertão em Monte Santo, próximo ao lugar onde o meteorito foi originalmente localizado. Outras duas se encontram no Museu Geológico da Bahia em Salvador, e no Museu Antares de Ciência e Tecnologia, em Feira de Santana.

Toda a saga de transferência do meteorito culminou na produção do relatório citado anteriormente, apresentado ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, e à Sociedade de Geografia, editado no Rio de Janeiro em 1888, pela Imprensa Nacional, em dois idiomas – francês e português. Apresenta 19 fotografias originais anexadas ao longo do texto, na versão em português. As imagens do relatório são de autoria do fotógrafo Marc Ferrez – composição com os retratos dos membros da Comissão – e de Humberto Antunes, engenheiro civil que participou da Comissão de transferência do Bendegó.

O relatório demonstra um dos mais significativos usos e funções da fotografia no século XIX, que se refere ao registro documental. Interessante ressaltar que parte da documentação iconográfica foi feita pelo próprio engenheiro civil que compunha a comissão – e não tinha, na fotografia, um ofício remunerado. 

O sentido do relatório é dado essencialmente pelo texto. As imagens são acompanhadas por legendas identificando o local fotografado e/ou o título da fotografia, apresentando-se emolduradas, e em sua maioria, no formato retangular horizontal.

O documento é composto de uma carta inicial, datada de 20 de agosto de 1888, escrita no Rio de Janeiro, por José Carlos de Carvalho ao Ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Junto ao meteorito, foram transferidos fragmentos de rochas e as fotografias que compõem o relatório, conforme lista de objetos apresentada pelo Chefe da Comissão. Traz ainda uma planta e perfil longitudinal do trecho percorrido pelo meteorito, um histórico do Meteorito de Bendegó e das tentativas realizadas anteriormente para sua remoção, notícias de meteoritos, plantas e mapas da região, além do diário da transferência.

O exemplar do relatório que faz parte do acervo Bibliográfico do Museu Mariano Procópio possui número de arrolamento, fazendo parte, portanto, da Coleção de Alfredo Ferreira Lage à época de seu falecimento. No entanto, como uma réplica do meteorito foi enviada à França para a Exposição Universal de 1889, é possível que o relatório tenha pertencido à Família Cavalcanti, tendo em vista a participação direta dos Viscondes de Cavalcanti no evento. Essa hipótese relaciona o relatório ao contexto da participação brasileira nas exposições universais e, consequentemente, ao acervo relacionado ao tema no Museu Mariano Procópio. De volta ao meteorito, são bastante emblemáticas as imagens veiculadas pela mídia, dos escombros do incêndio à sua volta, no hall de entrada do museu. Mas o Bendegó resistiu. O descaso com o patrimônio museológico brasileiro gerou mais um capítulo na saga e na biografia do Meteorito de Bendegó, transformando-o no símbolo da resistência e sobrevivência do Museu Nacional.


Referências

BRAGA, Jesulino. A pedra que veio lá do infinito: o meteorito de Bendegó e o Museu Nacional. Concinnitas, ano 19, número 34, dezembro de 2018, p. 147 -164.

CARVALHO, José Carlos de. Météorite de Bendégo – Rapport présenté au Ministère de L’Agriculture, du Commerce et des Travaux Publics et à la Société de Geographie de Rio de Janeiro sur le déplacement et les transport du Météorite de l’intérieur de la province de Bahia au Musée National. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1888.

FERRAZ, Rosane Carmanini. Catálogo de fotografias oitocentistas: O relatório do Meteorito de Bendegó. Fundação Museu Mariano Procópio,

KOSSOY, Boris. Fotografia e história. São Paulo: Editora Ática, 1989.


Rosane Carmanini Ferraz é professora de história e historiadora, atuando no Departamento de Acervo Técnico e Ações Culturais da Fundação Museu Mariano Procópio e na Fundação CAEd (UFJF), em cursos de Especialização e Mestrado em Gestão da Educação Pública. Desenvolveu pesquisa de doutorado em História (UFJF), intitulada “A coleção de fotografias do Museu Mariano Procópio e as sociabilidades no Brasil oitocentista”. Tem como principais áreas de interesse: viagens, cultura, cinema, artes visuais (em especial, a fotografia) e artesanato.



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