E por quê deveria descer?

A vida de Salete era comum – praticamente a mesma insegurança que se abate sobre mulheres jovens e apaixonantes. Sua pele era muito clara, e o corpo inteiro marcado por pequenas pintas, o que havia rendido o apelido de chita da parte de sua avó paterna, e de marsupilami na escola. Tinha os cabelos castanho escuros, a voz firme, e os olhos curiosos. Ela era incrivelmente parecida com as outras de sua idade e do seu país, só uma coisa era diferente; quer dizer, foi ficando. Numa manhã de domingo, depois de ter sonhado com um segredo que não quis contar a ninguém, a Salete deixou de tocar os pés no chão. Ela flutuava, perdeu o peso.

Hoje, já são muitas estórias que contam a história, o que deixa difícil saber exatamente como foi. Os mais apressados diziam que ela tinha feito um pacto maligno com qualquer Astaroth tupiniquim e, por isso, bateram na porta de sua casa: mulheres de coque e bíblia nas mãos cantando hinos e besuntando com óleos. Repreenderam Belfegor até as pregas vocais ficarem como que cheias de areia, mas não deu certo. Quanto mais alto pregavam com a língua, mais despregados os pés de Salete ficavam do chão – tanto que foi preciso que o pai fechasse as janelas, com medo de que a menina vazasse rua a fora. Deus parecia não ter poder ali – ou, se tinha, sua diversão era aquela moça pipa que parou a cidade. Muitas gente se benzia quando passava na calçada da casa. A apreensão se tocava no ar; do prefeito ao bispo, todos estavam sem posição para sentar em suas cadeiras. Menos Salete. Ela parecia gostar.

Como não houvesse resultado com a bíblia crente, no outro dia usaram a bíblia católica, e depois o corão, e alguns sutras theravadas. Dizem que um ritual vajrayana aconteceu também sob os auspícios de dakinis verdes e brancas; nada funcionava. Se no primeiro dia, a menina flutuava como que a uns sessenta centímetros do chão, na terça-feira já estava a um metro e dois centímetros acima do assoalho. O pai mediu com uma trena várias vezes. O pavor era de que ela saísse por aí carregada por uma brisa de primavera que soprasse mais forte. Foi por isso que encheram uma lata grande de terra e deixaram no chão, amarrada aos tornozelos da beata. Ela fazia tudo do alto. Comia quando a mãe lhe entregava o prato com a ajuda de uma cadeira, dormia em pé mesmo, mas sem dificuldade. Pior era usar o banheiro e tomar banho, porque essas duas coisas são demasiadamente terrenas para qualquer dama aerada. Na quinta-feira, ela parou de falar também.

Não é preciso dizer muito para imaginar o derivado da coisa toda. A cidade, que é pequena, foi ficando em polvorosa. Presa no cordonê, a jovem tinha seus adoradores, que faziam oração e pediam às pessoas para se arrepender. A “beata Salete” era um sinal da Providência para apontar o arrebatamento que deveria estar próximo, talvez antes do Natal. Mas também houve oposição e malhação de Judas em setembro, com o boneco vestido com uma meia e um vestido que roubaram do varal, mais uma foto que alguém imprimiu do anuário escolar. Gente não voa, e se voa só pode ser de duas uma: obra do mal ou delírio coletivo. Uma metade da oposição continuava apostando no cramunhão, mas a outra alegava histeria, uma espécie de histeria de dança de 1518 reeditada no século XX. A oposição sempre é mais dividida mesmo.

Com trinta dias, já eram sete latas de terra e cordas grossas. Uma bobeira, e Salete sumiria, com certeza. O frenesi, porém, foi diminuindo, e como não viesse nenhuma nuvem de gafanhotos, ou chuva de sangue, ou epidemia, ou arrependimento; como tudo estivesse absolutamente normal desde a cara fechada do inspetor escolar, passando pelo branco bege do jaleco do farmacêutico e a insistência para que mulheres se casassem virgens, Salete  foi deixando de ser novidade. De paranormal, aquele silêncio flutuante ficava comum, e é daí que nasce uma espécie de problema mais grave: ser comum é o desejo da massa. Se não era para jogar raios pelos olhos ou adiantar o Juízo Final, que a menina parasse de se aparecer e descesse logo. Que ela viesse ser mais um ali embaixo, ora bolas. No final do segundo mês, as pessoas tinham inveja da Salete e ela, por sua vez, parou também de comer e de cagar. Um dia fechou os olhos, e só estava lá, só isso. Praticamente não era mais pessoa.

Os pais se assustaram no começo, mas aos poucos foram se acostumando com uma filha feita sem peso. De manhã cedo, a mãe abria a janela da sala e prendia com cuidado a corda na trave que dividia as duas bandas. Salete era uma pipa. Se armava chuva, a mãe corria logo e trazia a filha para dentro com medo dos raios. Como a Salete se encostava no teto, eles foram acolchoados para que dentro de casa ela se deitasse, sempre acima de todas as cabeças.

Foi assim por muitos anos; pelo menos é o que se diz, nessa época eu ainda não estava lá. Quando cheguei, tudo acontecia dentro dos conformes, e a prefeitura, através da subsecretaria de turismo, havia desapropriado a padaria debaixo da janela da sala e feito ali uma pracinha cercada, na qual todos os visitantes poderiam ver de perto a moça que não pesava mais que um galho de arruda. Foi criado um festival anual da primavera, quando a janela e a corda eram enfeitadas com margaridas, violetas, azaleias e rosas brancas. Em Porto Alegre, iam na casa de Mário Quintana; no Rio de Janeiro, visitavam a estátua de Drummond, no posto 6; em Recife, fotografavam na Praça do Marco Zero; e aqui, no meio de Minas e do nada, a comunidade aprendeu a girar em torno da menina balão. Foi quando eu cheguei.

Cheguei de trem e de passagem. Para ser sincero, eu não me lembro bem o que fazia ali. Na época, eu escrevia crônicas de gente comum e viajava para onde me dessem um bilhete. Normalmente, me sentava na praça e esperava que alguém sentasse do meu lado. Acendia um cigarro, depois outro, e sempre alguém se sentava do meu lado. Dali pra frente, a conversa fazia o restante. Ouvia histórias e depois recontava do meu jeito: editava, relia e vendia para jornais. Fiz isso por anos a fio, o que me vacinou contra discurso politiqueiro, terra plana, lobisomem e o PMDB. Não era fácil me enganar.

Desci do trem e vi um cartaz com a foto da Salete menina ainda. Perguntei o que era, mas não fiquei convencido com a explicação. Se não me falha a memória, me hospedei na pensão Borges, por detrás da torre da igreja matriz – um dos poucos lugares da cidade de onde não era possível ver o balão preso na janela. Quando já estava pensando em levantar âncora e partir de novo – afinal, eu tinha três relatos incríveis de algumas figuras icônicas do lugar – tive um sonho estranho. Sonhei que estava caminhando em um jardim grande onde uma menina estava sentada quase debaixo de um bougainville. Ela era clara e com várias pintas pelo corpo, tinha os cabelos castanho-escuro, um olhar curioso. Ela lia. Não vi o que, exatamente, mas ouvi que declamava de si para si “Toda a realidade olha pra mim como um girassol com a cara dela no meio”. Aí, então, ela fechava o livro, me olhava nos olhos e ia subindo, subindo até desaparecer no céu.

Acordei refletindo: A menina deveria estar leve de poesia! Fui, então, até a casa-museu onde alguns japoneses tiravam fotos com seus chapéus de turista e sua estética acumuladora de informações. Olhei pra cima, contra o sol, e vi que não era uma menina balão, virou mulher. Como era linda e como dançava na casa do vento! Seria a minha maior história. Gritei pra ela, mas nada aconteceu. Minto; na verdade, fui repreendido por guarda que fazia patrulha. Repreendido não pela situação de Salete, é preciso dizer, mas porque o barulho incomodava a vizinhança. Mesmo assim, tentei gritar e fiquei berrando até que o pai apareceu lá na janela e fez sinal. Subi.

Me abriram a porta e me contaram tudo isso que contei sobre antes de minha chegada. Não sei se é verdade. Ouvi também que tinham medo do que aconteceria com ela quando morressem, que não tinham família além dos três, e que os pais andavam cada dia mais velhos e cansados. O tempo foi escorrendo por entre os dedos da gente, e era o momento de trazer a filha para casa. Debruçado na janela, aquele homem macilento enrolava a corda que prendia o tornozelo da mulher como se enrola uma mangueira de jardim. Colada no teto, diante de mim, estava uma bela adormecida. Vi a mãe carinhar seu rosto, cantar um música melancólica, desligar a luz  e desejar boa noite. Tudo aquilo foi hipnótico. Voltei todos os dias por uma semana, sempre por volta das 18 horas, quando a bandeira de cabelos castanhos era arriada.

Na tarde de uma quinta-feira, ou sexta – eu não me lembro bem, só sei que foi depois da quaresma – eu resolvi ficar um pouco mais e me sentei na poltrona de linho vermelho no canto da sala para ler. Queria ler para ela. Na ocasião, eu me atracava sobre um García Márquez. Não teve efeito algum. Li depois um pouco de filosofia existencialista, saltei para Victor Hugo, Dumas, Shelley… Salete dormia e voava.

Na véspera da minha viagem de volta a São Paulo, eu já não tinha mais livros para ler; mesmo assim, me sentei como se tivesse. No lugar de uma página de papel, eu li na memória a brincadeira de Pessoa “o poeta é um fingidor, finge tão completamente…” declamei tudo na penumbra. Foi quando a Salete baixou um pouco e abriu os olhos. Tremi. Xinguei. Cacete, não me lembrava de muita poesia, só clichês. Emendei um Neruda “não te amo como se fosse rosas de sal ou topázio”, depois foi o Soneto de Fidelidade, Sentimento do Mundo, O Pato Pateta, Erro de Português. O quanto sabia eu disse, meu deus, até que ela estava de olhos abertos a dois palmos de mim.

– Sonhei com um bougainville – ela disse.

– Eu sei.

– Não quero descer.

– O que faz lá em cima?  

Salete nunca me respondeu, mesmo tendo descido outras vezes e olhado pra mim. Dois anos depois, enterramos seu pai. Mais três, e eu sepultei sua mãe. Não voltei a São Paulo. Só compro livros de poesia, e quase toda noite sonho com uma brisa que me tira do chão. Uma vez, num jogo de búzios em Porto Seguro, o babalorixá me jurou que eu era filho de Iansã. Era sobre isso? Não sei. Tenho a impressão de que nunca vou saber.


Vinícius Lara é psicanalista, historiador, fotógrafo amador e um apaixonado pelo absurdo



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