Quando percebi, já era final de ano.
Mal me recordava que éramos estudantes do terceiro ano do ensino médio e, dali em diante, seria o começo da vida na faculdade e o início de nossas vidas em outras esferas do mundo.
Muito aconteceu durante os meses que se seguiram e, sem acordar para a realidade que me cercava, não percebi que o fim de meu contato diário com Ana também estava próximo.
Após a noite em sua casa, ela ficou uma semana sem me dirigir a palavra. Para nada.
Se estávamos perto e no mesmo grupo de amigos, ela se desviava de minha presença e ficava na outra ponta. Se estávamos em classe, ela dormia a maior parte das aulas em que ficaríamos conversando geralmente e evitava sequer me olhar. Obviamente, as pessoas que conviviam diariamente conosco percebiam que havia algo errado, visto que vivíamos rindo e juntas e, de um instante ao outro, eu passava a ser ignorada.
Eu não sabia o que se passava em sua mente, mas, em mim, o que existia de sentimento ainda estava forte e necessitava ser dito, mesmo que fosse apenas para aliviar o peso de meu coração guardar a sete chaves esse segredo.
– Sinceramente, não sei por que ela ficou desse jeito. Não sei o que fiz de errado.
– Acho que você não fez nada errado, meu bem. A Ana que deve ter feito algo que ela não imaginava e agora tá confusa. – Mauricio tentava me acalmar.
– Mas… ela nem me olha mais. – Eu estava desolada.
– Olha, acho que você deveria conversar com ela. Sei que ela tá te ignorando, mas, sei lá, tenta pegar um momento em que ela esteja sozinha e fala tudo.
– Tudo? Tipo tudo mesmo?
– É! Fala o que você sente por ela, pergunta por que ela tá desse jeito. Pior do que tá, não fica; então, não custa tentar.
E eu tentei.
E ela me ignorou.
E eu tentei.
E ela me ignorou.
Toda vez que eu chegava perto, ela se afastava, como se eu estivesse com uma doença terrível e contagiosa.
Fiz a última tentativa um dia antes do último dia de aula.
Na hora do intervalo ela saiu para fumar e eu fui atrás, porque não poderia prolongar mais o sofrimento e necessitava acabar com o caos que estava rodeando nossa amizade.
– Você vai me escutar. – Eu falava cansada enquanto subia o morro correndo atrás dela para alcançá-la.
– Eu não tenho nada pra dizer. – Ela acendeu o beck e evitou me olhar nos olhos.
– Mas eu sim. Então só me escuta.
Estávamos só nós duas, no alto daquele lugar e a cidade abaixo de nós.
– Eu estou apaixonada por você.
Ela se limitou a me encarar, tragando e soltando a fumaça, muda.
– E desde que aconteceu aquilo na sua casa…. Eu…. Eu não sei o que pensar. Porque você me beija no banheiro e aí vai e tira minha roupa, aí agora finge que eu não existo.
– Aquilo foi um erro. – Ela olhava para todos os lugares, menos para mim.
– Não parecia um erro quando você foi até mim.
Ela respirou fundo, umedeceu o lábio com a língua e buscou as palavras.
– Eu sabia que você tava gostando de mim. Por isso foi um erro a gente ter transado. Eu não devia ter permitido que acontecesse, mas, na hora, eu esqueci disso e pensei só em que eu queria saber como seria, porque tava curiosa em ter essa experiência também. Foi ótimo, não vou mentir e nem tem como, você sabe muito bem. Mas, eu não sinto o mesmo por você, Bianca. Nunca senti. A gente é amiga e só isso.
– Então eu fui uma experiência? – Eu falava o mais baixo possível.
– E eu não fui? – Ela assentiu.
Eu sentia que as lágrimas viriam, mas torcia para que conseguisse segurar.
– A gente tem dezessete anos, Bi. A gente tem que curtir o mundo, aproveitar as oportunidades, os momentos. Fazer o que tem vontade. E deu vontade, eu quis. Eu também tenho minhas curiosidades. Mas foi só. Nada além de matar a vontade. Eu tô esse tempo todo te ignorando porque sei que é melhor pra você se afastar de mim do que ficar mais próxima. Ficar mais próxima de um sentimento que nunca vai ser reciproco só vai te causar dor, e como amiga eu não quero isso.
– Infelizmente isso já aconteceu. – Enfim as lágrimas escorriam pelo rosto enquanto eu tentava não desabar.
– Foi irresponsável da minha parte ter te tratado dessa forma, mas eu realmente achei que dava pra separar as coisas. Desculpa se te fiz sofrer, mas eu não imaginei que você sentisse tanto assim por mim.
Abaixei a cabeça e não conseguia mais falar, estava de coração partido.
E doía demais.
– As aulas acabam amanhã. Então o colégio tá no fim, e, isso quer dizer que, depois daqui, a gente não vai se ver mais. – Ela se aproximou e colocou uma mão em meu ombro. – E vai ser melhor assim. Foi ótimo ter sua amizade, foi ótimo ter sido o seu primeiro beijo, foi ótimo o que a gente fez, mas eu não queria que as coisas tivessem sido desse jeito. Então, desculpa, mas a partir de agora, nossa amizade acaba aqui.
Ela tirou a mão de mim e começou a descer o morro.
Eu a observei partir, pensando o quanto ter escutado aquilo tudo era horrível e para ela não significava nada.
Eu sabia que a vida era feita de decepções e que sem elas nós não crescemos, mas, naquele instante, era o fim do mundo e sem perspectiva de renascimento.
Fiquei por lá, em pé, parada, olhando para o nada e pensando em mil coisas. Ah, se eu soubesse que não seria a primeira e nem a última vez que algo assim aconteceria…
Quando retornei para a classe, permaneci sentada ao seu lado.
Coloquei o fone de ouvido, e a primeira música que tocou falava sobre gostar de alguém que não sentia o mesmo, e o quanto essa pessoa desejava não ser amigo de quem o amava para que não se compadecesse daquela dor; e, eu me perguntava, se ela ao menos se sentia triste de verdade por ter me feito triste.
Mas, talvez, ela nem se importasse.
O último dia de aula era um alvoroço.
Todos queriam assinar as camisas de todos – que ficariam jogadas no armário como recordação de um colegial bom para alguns e péssimo para outros. Porém, Ana não foi.
Procurei-a por todos os cantos e não a encontrei.
Tive certeza de que fora para não cruzar comigo e evitar alguma confrontação; e eu só queria seu nome em minha camiseta para que ela não se esquecesse de mim.
– Ela não vem, Bi. – Mauricio se aproximou e me ajudou a guardar as coisas para irmos embora. Perguntei pras meninas e elas disseram que, parece, que a Ana viajou com os pais ou algo assim.
– Tá tudo bem. – Forcei um sorriso, coloquei a mochila nas costas e o abracei pela cintura para sairmos dali.
– Fico péssimo que você esteja assim.
– Uma hora vai passar, você vai ver.
– Eu sei Bi. Pensa que agora a gente começa outra fase das nossas vidas e tem um mundo lá fora esperando.
– Ainda bem, Mau, porque se não tivesse eu estaria perdida. – Rimos juntos e saímos.
Quando estávamos deixando para trás definitivamente o edifício que pertenceu a uma parte da nossa adolescência, e onde ficou meu beijo gravado entre o corredor frio e que se tornara quente naquela hora, olhamos mais uma vez para lá, nos despedindo de fato da escola.
– Bi, olha! – Mauricio apontou para o outro lado da rua.
Lá estava Ana, distante, parada e olhando para nós dois.
Ela forcou os lábios em um sorriso pesaroso e acenou com a cabeça.
Eu congelei e meu coração parecia fugir de meu peito, mas, entendi o que ela quis dizer apenas com aquilo.
“Está tudo bem? Desculpa pelas palavras rudes”.
Eu sorri, sinceramente, balancei a cabeça também em um aceno e levantei o braço, com um tchau estático.
“Sim, está tudo bem. Eu um dia irei compreender”.
Ela sorriu um sorriso tímido e foi embora de vez.
E eu entendi que tudo aquilo estava indo embora com ela – as memórias, os acontecimentos, as vontades (mesmo que estivessem guardados para sempre em mim) porque realmente estava tudo bem e os meus dezessete anos também estavam partindo para uma nova vida começar.
Barbara Pippa é nascida em Juiz de Fora, participante em antologias de poemas e contos. Acredita em astrologia e muda o cabelo de acordo com o humor.
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