Com todos os contornos que a pandemia do novo Coronavírus vêm trazendo para a sociedade, alguns tópicos relacionados às desigualdades social e econômica voltaram à tona. Um deles, o objeto principal desse texto, não parece ser conhecido em sua totalidade pela maioria das pessoas.
Falamos sobre a fome. É de amplo conhecimento o fato de que a fome é um problema recorrente, geralmente ligado aos países mais pobres do mundo, e que é uma triste realidade em muitos lares. Mas nós sabemos o suficiente? Temos a real consciência do que significam os números, as projeções e as causas?
Inicialmente, começamos com uma declaração forte: comer é um ato político. E o que queremos dizer com isso? Uma democracia bem consolidada é essencial para os direitos humanos e para o direito humano à alimentação adequada. É isso mesmo, a alimentação é um direito – e mais do que isso, é um dos direitos mais importantes para a dignidade da pessoa humana.
O direito humano à alimentação adequada rege dois pilares: a) a soberania alimentar, que se refere à autonomia de um Estado para definir as suas políticas, a autossuficiência alimentar para a população; e b) a segurança alimentar, que significa termos alimentos em quantidade e qualidade suficientes para garantir esse direito.
O Brasil tem autonomia e políticas para regular a questão da alimentação e, além disso, sabemos que ainda hoje o mundo produz alimentos mais do que suficientes para toda sua população. Contudo, nosso país está voltando ao mapa da fome.
Como retrata a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018, divulgada pelo IBGE, a insegurança alimentar grave esteve presente no lar de 10,3 milhões de brasileiros nesses anos, o que significa que quase 5% da população brasileira convive novamente com a fome. Agora, a estimativa é de que cerca de 5,4 milhões de pessoas passem para a extrema pobreza em razão da pandemia. O total chegaria a quase 14,7 milhões até o fim de 2020, ou 7% da população, segundo estudos do Banco Mundial.
A ONU, em um relatório do programa mundial de alimentos, indicou que o número de famintos, no mundo, praticamente dobrou por causa da pandemia de Covid-19. Se esse cenário permanecer, 265 milhões de pessoas não terão o que comer até o final do ano.
Apesar da enorme quantidade de alimentos produzidos, aproximadamente um terço destes se perde ou se desperdiça, evidenciando que existem problemas nesse processo e na distribuição. Os alimentos não consumidos representam desperdícios de recursos naturais e de outros elementos utilizados na produção, ou seja, alimentos são perdidos ou desperdiçados em todo o ciclo da rede alimentar, da produção agrícola até o consumo final em nossas casas.
Associado a isso, temos os problemas do meio ambiente que diretamente se relacionam com a alimentação. O aquecimento global, as queimadas na Amazônia, o desmatamento, os problemas no Cerrado e no Pantanal: com esse nosso modelo de desenvolvimento agroalimentar, que terra vai sobrar para plantações saudáveis, e como as gerações futuras vão lidar com esses danos?
Vivemos um momento de desmonte geral das políticas públicas, com especial destaque para as políticas de segurança alimentar e nutricional, além da redução dos investimentos nas políticas voltadas à agricultura familiar, que deram sustentação ao bom desempenho brasileiro em anos anteriores.
Mas se até então os dados desse artigo não parecem práticos ou não nos sensibilizam, vejamos algumas ocorrências mais drásticas.
A pandemia de Covid-19 gerou um problema grave relacionado à alimentação escolar. Isso porque, muitas vezes, a única refeição substanciosa de milhares de crianças brasileiras é feita na escola. Com a interrupção das aulas, muitas dessas ficaram sem alimento e expostas à fome.
Mas vamos além: outro fator relevante para o momento é o aumento no valor dos alimentos. O preço de itens da cesta básica já aumentou 20% nos últimos 12 meses em produtos como leite, arroz, feijão e óleo de soja, segundo associações representativas do setor de supermercados. Isso significa que milhares de famílias estão, literalmente, racionando a quantidade e a qualidade da comida que vai em cada prato todos os dias.
É inacreditável que a fome possa matar mais que o próprio vírus, mas é isso que as pesquisas projetam: a ineficiência na resolução de crises humanitárias ficou escancarada, e antes do fim do ano, de 6.100 a 12.200 pessoas poderão morrer de fome a cada dia em decorrência dos impactos sociais e econômico da doença.
A situação não pode se perpetuar. O direito a estar livre da fome é prontamente exigível, e cabe ao Estado respeitar, garantir, promover e proteger as diretrizes que garantam esse direito. Por mais que existam ótimas ações voluntárias pelo país afora tentando levar comida aos lares brasileiros, o combate à fome não é filantropia, e o governo é obrigado a criar e efetivar as políticas públicas.
O que podemos tirar desse ano turbulento é como o mundo precisa urgentemente de novas estratégias. Precisamos dar um basta a esse modelo de desenvolvimento predador do meio ambiente e da vida das pessoas.
Precisamos construir sistemas alimentares mais justos, mais resistentes e sustentáveis, com mais participação direta dos destinatários. Além disso, debater alimentação nas escolas e na sociedade em geral também se faz necessário, pois assim estaremos debatendo o futuro, a sustentabilidade e a própria cidadania.
A comida que elegemos está diretamente ligada com a proteção planetária e o desenvolvimento dos povos, por isso também devem ser incentivadas as ações de produção alimentar mais cooperativa, principalmente aquelas que incentivem os pequenos produtores e reduzam o uso de agrotóxicos.
“Aqui, na Terra, a fome continua...
A miséria, o luto, e outra vez a fome.”
(José Saramago)
REFERÊNCIAS
A fome na pandemia. OBSERVATORIO. Publicada em: 01/10/2020. Disponível em: <https://observatorio3setor.org.br/podcast/a-fome-na-pandemia/>.
Brasil de volta ao mapa da fome. RADIS – FIOCRUZ. Publicado em 20/10/2020. Disponível em: <https://radis.ensp.fiocruz.br/index.php/home/noticias/brasil-de-volta-ao-mapa-da-fome>.
Fome pode gerar mais mortes que a pandemia até o final do ano. OXFAM. Publicado em: 17/08/2020. Disponível: <https://gife.org.br/fome-pode-gerar-mais-mortes-do-que-a-pandemia-ate-o-final-de-2020-alerta-oxfam/>.
ONU diz que pandemia da COVID-19 faz o número de famintos dobrar no mundo. CNN. Publicado em: 27/09/2020. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2020/09/27/onu-diz-que-pandemia-de-covid-19-faz-numero-de-famintos-dobrar-no-mundo>
Déborah Silva é pós graduanda em Direito Constitucional.
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Sempre bom, Déborah
Triste realidade
Por mais que ações individuais não mudem a realidade, elas são necessárias para a existência de vários projetos locais. Em JF temos o “Cestas Agroecológicas JF” que produz alimentos sem agrotóxicos a um preço justo.
Parabéns pelo texto.