“Me empresta o lápis cor de pele?”
Nessa frase aparentemente simples, formada por apenas sete palavras, há muita dor e problemas de profundidade imensurável.
Eu era muito pequena quando escutei esse pedido de uma colega, ainda no jardim de infância. Me soou estranho. Lembrei da cor que minha avó paterna Dair carregava em seu corpo. Da Vera, preciosidade da minha família. Do meu primo Thomas. Todas essas pessoas possuíam as mais diferentes e ricas tonalidades em suas peles e faziam parte de minha rotina e vida. Olhei pro meu estojo e tinha lápis branco, marrom, preto, vermelho. Então ela pegou o rosa claro. Não entendi.
Essa criança não nasceu com essa perspectiva, alguém a ensinou.
Pois bem: Sou Victória, brasileira, escritora, criadora e idealizadora do Caçadora de Histórias – O Projeto que tem como essência contar histórias de gente real, ajudando-as a ter um novo olhar sobre si e ver o que são protagonistas de suas jornadas. Mas hoje não vou contar a história de ninguém, não é meu lugar de fala. Saio cena e o holofote brilha em Mateus.
Mateus é gente de verdade, cheio de beleza e graça, tem arte pulsando em suas veias. Mateus é dono de uma voz potente e terna. Mateus é narrador. Mateus é brasileiro. Mateus é preto. Mateus é humano. E agora vai te contar a própria história. Vamos com ele?
“Sabe, eu nem sempre fui preto. Quer dizer, eu sei que não fui uma criança preta. Na verdade, até hoje me pego questionando se sou mesmo preto. Seria mais fácil se isso dependesse só do que o espelho me diz.
Vamos do início:
O fato é que meus pais sempre trabalharam dobrado para que eu e minha irmã tivéssemos um ensino de boa qualidade. E, dentro de casa, os princípios eram de ouro. Cresci ouvindo e sabendo que eu não era pior que ninguém, e que tinha condições de ser bom, no que quer que fosse.
O trabalho sempre duro dos meus pais era pra pagar uma boa escola. Eu nunca notei que, por conta disso, sempre tive mais colegas e amigos brancos. Mesmo sem perceber, era bem comum eu ser o único preto no grupo. De fato, nunca estranhei essa desproporção das cores de pele. Éramos iguais em tudo – pelo menos para mim -, e essa visão se estendeu até a juventude.
Por fim, o esforço dos meus pais por educação funcionou. Isso porque hoje consigo ver o que faltou eles me ensinarem. Me ensinaram valor do trabalho, mas não que um preto como meu pai teria menos chances de emprego do que pessoas brancas como minha mãe. Me ensinaram que existe a violência lá fora, mas nunca me chamaram atenção para a cor da maioria das pessoas que viram notícia – ou das que não viram, melhor dizendo.
Sabe, eu nem sempre fui preto. Poxa, eu tive até uma adolescência, ou quase isso. Sem saber que gente como eu geralmente vira adulto mais cedo.
Sempre andei de cabeça erguida; às vezes, até demais. Sem saber da ferida que cada preta e cada preto como eu leva na autoestima.
Eu nem sempre fui preto. Fui para a universidade federal, estudei arte, filosofia; nunca apanhei da polícia, nem fui confundido com assaltante. Ainda.
Não, eu nem sempre fui preto. Preto é sinônimo de luta, luta que só mais tarde fui descobrir que existe e que mata.
Realmente, eu nem sempre fui preto. Preto é sinônimo de resistência.
Hoje, eu recupero o tempo perdido.”
Eu e toda a equipe da Revista TRAMA agradecemos Mateus Guidinho pela honesta, íntegra, necessária e urgente participação na coluna “Caçadora de Histórias”, sentimos profundamente pela perda de João Alberto Freitas e nos solidarizamos á família.
Vidas negras importam.
Victória Vieira é escritora e idealizadora do projeto Caçadora de Histórias. Caçando e ouvindo histórias, vou escrevendo a tua com minhas palavras e te ajudando a ter um novo olhar sobre ela. Siga o projeto no Instagram.
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