“It’s game over, man! It’s game over!”
– Hudson (Bill Paxton), Aliens, 1986
“Wrong, terribly wrong”
– Robert McNamara (Secretário de Defesa dos EUA, 1961-67)
Para quem gosta de cinema ou aprecia ficção científica, não é muito difícil lembrar-se dos anos 1980 como uma era particularmente prolífica para o gênero. Naquela década, foram lançados vários filmes que ascenderam ao panteão de clássicos absolutos (como E.T, O Extraterrestre ou De Volta Para o Futuro) e vimos o nascimento de algumas franquias que até hoje – pra bem ou para mal – continuam a ser produzidas e chegam a render alguns milhões de bilheteria, como Star Wars (cujo primeiro filme é de 1977) e Exterminador do Futuro. Foi nessa década, também, que surgiram os dois filmes mais apreciados de uma das mais aclamadas franquias de sci-fi: Alien, de Ridley Scott (1979), e sua continuação, Aliens, de James Cameron (1986).
É comum – e até mesmo involuntário – classificarmos coisas entre boas e ruins, ainda que isso seja algo completamente subjetivo. As bandas que mais gostamos sempre são as melhores, os nossos autores favoritos são infalíveis, e somos tentados a nomear algo como “um clássico” muitas vezes baseados unicamente em nossa relação pessoal com a obra. Porém, por vezes, o “clássico” em questão realmente faz jus a esse título por seus próprios méritos; e Aliens é facilmente um desses exemplos. Indicado em sete categorias do Academy Awards – incluindo de melhor atriz para Sigourney Weaver – e levando duas estatuetas por sua edição sonora e efeitos especiais, o filme é considerado por muitos uma das melhores sequências de todos os tempos (sendo, em muitos casos, considerado superior ao original).
Alien, de 1979, é uma obra de horror psicológico – uma pequena tripulação num ambiente escuro e claustrofóbico junto a um ser alienígena extremamente violento e mortal (que se tornou um dos maiores ícones da ficção científica e do horror); Aliens retém parte do marcante suspense do primeiro filme, mas Cameron leva sua obra a um outro patamar: um filme de ação construído com maestria (sendo considerado como um dos exemplos máximos de “como se fazer um filme de ação – e uma sequência”) que, apesar de possuir um tom completamente distinto do original, traz uma narrativa que complementa muito bem a obra anterior.
Ora, falar de cinema é complexo; ainda mais quando o autor em questão não é, nem de longe, nenhum especialista no assunto. Por essas e outras, não tenho a mínima intenção de me ater a aspectos técnicos. Pois bem, eu sou um historiador. E o que História tem a ver com um filme de ficção científica dos anos 1980? Muitas coisas – e nenhuma delas tem a ver com o fato de o filme ser “antigo”.
Por baixo da superfície da premissa de Aliens, existe muito mais do que um simples filme de ação/ficção científica com um toque de terror. Sua estrutura, sob muitos aspectos, é a de um filme de guerra – e inspirado em uma guerra bem específica.
“This time, it’s war”.
Assim era anunciada a esperada sequência de Alien, que levou sete longos anos para chegar aos cinemas. Essa frase, presente em diversos posters promocionais, deixava no ar (assim como o título, no plural), que Aliens seria um tanto diferente da obra de Ridley Scott, e já dava uma dica sobre alguns dos principais aspectos do filme.
Em virtualmente tudo, há um discurso.
Pode ser bem óbvio, às vezes; em outras, nem tanto. Mas ele existe, e filmes são carregados de simbologias e discursos explícitos e implícitos.
Se você nunca assistiu Aliens, fique tranquilo. A sinopse é mais ou menos essa: depois de passar anos vagando pelo espaço após os eventos do primeiro filme, a protagonista Ellen Ripley (Sigourney Weaver) é encontrada, e o relato de sua história é completamente desacreditado. No entanto, a situação muda quando o contato com a colônia Hadley’s Hope, localizada no planetoide LV-426, visitado pela tripulação de Ripley anos antes, é perdido. Seria uma falha do transmissor? Ou algo mais sério, ligado à estranha e mortal forma de vida alienígena encontrada naquele planeta por Ripley e sua tripulação? Visando esclarecer a situação, um destacamento de “Fuzileiros Coloniais” (Colonial Marines) é enviado à colônia, fortemente armado e bem equipado, acompanhados por Ripley e por Peter Burke (Paul Reiser), um representante da megacorporação responsável pela construção de Hadley’s Hope, a Weyland-Yutani. Chegando lá, o grupo encontra as instalações externamente intactas; porém, não há nenhum sinal da população da colônia exceto por uma garota de 10 anos chamada Newt, que, visivelmente em choque, pouco revela sobre o que aconteceu – ainda que os corredores internos, cheios de barricadas, mostrem indícios de um intenso confronto. É aqui que a narrativa começa a crescer gradualmente até o clímax do filme.
Agora, vejamos alguns pontos.
Como dito anteriormente, aqui já é possível notar um rompimento considerável da sequência em relação a Alien: enquanto naquele filme a tripulação da nave Nostromo mal possui armas (seu arsenal é limitado a alguns lança chamas improvisados), aqui temos um pelotão de elite, fortemente armado e teoricamente preparado para lidar com qualquer situação como peça central da narrativa. O suspense, ainda presente em Aliens, é deixado em segundo plano dando lugar a tiros e explosões.
Certo, mas… E daí?
Vamos refletir um pouco sobre os Colonial Marines. Sua linguagem e sua postura remetem diretamente ao comportamento das tropas norte-americanas que lutaram na Guerra do Vietnã (1955-1975). E não somente sua linguagem faz alusão ao Vietnã: seu discurso também. Na primeira metade do filme, vemos uma tropa extremamente confiante, com um moral elevado, muitas vezes gabando-se das suas qualidades e dos seus armamentos ultra modernos, dispostos a enfrentar qualquer situação. Essa postura faz eco aos ideais da elite conservadora e dos setores militaristas da sociedade norte-americana, ideais que eram expressos nas políticas do então presidente republicano Ronald Reagan, que governava os Estados Unidos na época em que Aliens foi produzido. De acordo com o diretor, James Cameron:
“O próprio diálogo, o idioma, é basicamente a era do Vietnã. É o “discurso de guerra” americano mais contemporâneo a que eu tive acesso. Eu estudei como os soldados falavam no Vietnã, peguei certas partes específicas da terminologia e uma noção geral de como eles se expressam, e usei isso para o diálogo, para tentar fazer com que pareça um tipo realista de expedição militar, como oposto a uma alta tecnologia, futurista”
Por sua vez, os atores que interpretaram os soldados em Aliens foram submetidos a intensos treinamentos militares em preparação para as filmagens, sendo que seu líder tático (o sargento Apone), foi interpretado por Al Matthews – ele próprio um veterano desse conflito. Sua atuação, segundo os produtores do filme, foi muito baseada no improviso do ator baseado em sua experiência prévia em combate com o Corpo de Fuzileiros Navais. Interessante, não?
E essa é somente a ponta do iceberg (perdão, James Cameron).[1]
“We gotta nukes!”
Os ideais expressos pelos Colonial Marines são muito similares ao da elite militar dos Estados Unidos quando a escalada militar no Vietnã levou ao envio das primeiras tropas de combate em 1965 – ainda que envolvimento norte-americano na região da Indochina (composta pelo Vietnã, Laos e Camboja) tenha se iniciado ainda nos anos 1950, após a expulsão dos franceses em sua fracassada tentativa de reaver seu domínio colonial.
Lutando em maior parte contra guerrilhas (os Vietcong), cujo treinamento militar era básico e cujas armas eram limitadas a equipamentos leves (os embates com exército regular do Vietnã do Norte, uma força profissional, estava limitada nesse momento a escaramuças na fronteira), era fácil de entender a razão do otimismo de Washington. A crença generalizada era a de que a imensurável superioridade de poder de fogo e de recursos econômicos levariam, invariavelmente, a uma rápida vitória contra um inimigo tido como “inferior”. Não foi exatamente o que aconteceu, uma vez que tanto as guerrilhas comunistas quanto as forças regulares do Vietnã do Norte provaram ter uma imensa capacidade de adaptação e um dinamismo excepcional no campo de batalha, utilizando-se de táticas que anularam a superioridade material de destruição empregadas por norte-americanos e seus aliados (ainda que suas baixas tenham sido consideravelmente superiores). Apesar da opinião pública – que, em sua maioria, apoiou a intervenção a princípio -, a incapacidade de desferir golpes decisivos contra as forças comunistas e o fracasso em obter resultados práticos fez com que a insatisfação com a guerra atingisse níveis explosivos a partir de 1968. Esses fatores contribuíram para a retirada das tropas norte-americanas em 1973, e, dois anos, depois o Vietnã era reunificado sob um regime comunista.
Mas, afinal, o que Aliens tem a ver com isso – além da linguagem empregada por seus atores?
Assim como nas selvas do Vietnã, os todo-poderosos Marines se veem numa situação inexplicável: enfrentando um inimigo muito determinado e que não compreendem, num território hostil que desconhecem e com um comandante inexperiente (Gorman), eles são atacados – e praticamente dizimados. Durante toda a duração do filme, se constroi a tensão diante do inesperado: nunca se sabe quando ou onde os aliens irão surgir e atacar – num ambiente onde eles possuem conhecimento do território e não os soldados, de modo muito similar luta no Vietnã, cujas tropas combatentes se viam numa situação semelhante. O próprio modus operandi dos aliens, avançando furtivamente, sempre em silêncio e apostando no elemento surpresa, também faz uma alusão às táticas empregadas pelos Vietcongs, fora o fato de utilizarem túneis de ventilação para se locomoverem (os guerrilheiros vietnamitas eram notadamente conhecidos por sua extensa e complexa rede de túneis).
Toda a postura de “durões”, expressa pelas tropas no início do filme, caem por terra no primeiro encontro com os alienígenas (que vale ressaltar: não são seres inteligentes e agem por instinto – sendo, teoricamente, “inferiores” aos humanos). Diante dessa situação inesperada, incapazes de atingir o inimigo e com as perspectivas de vitória se esvaindo, os marines cogitam o uso de armas nucleares contra as criaturas – assim como Nixon ameaçou fazer (certamente, sem nenhuma intenção de cumprir) com o Vietnã.
Cameron afirma, a respeito dos Colonial Marines:
“Seu treinamento e tecnologia são inadequados para a situação, e isso pode ser visto como uma analogia à incapacidade do poder de fogo superior norte-americano em conquistar o inimigo invisível no Vietnã: muito poder de fogo e muito pouca sabedoria, não funcionou.”
O próprio envio dos Fuzileiros Coloniais, como o próprio nome diz, também remete a um “neoimperialismo”, uma vez que essa tropa não está prestando um serviço direto a um Estado – e, sim, age em defesa dos interesses de uma corporação, que demonstra um enorme desdém pela vida humana diante das possibilidades de lucrar com as criaturas alienígenas ao longo de toda a franquia Alien. A intervenção norte-americana no Vietnã não está diretamente ligada a aspectos econômicos, e sim políticos (ainda que esses fatores claramente se relacionem entre si), uma vez que havia o infundado temor que uma ascensão dos comunistas na Indochina levaria a um “efeito dominó” na Ásia, com diversos outros países seguindo o mesmo caminho (previsão completamente equivocada). Apesar disso, como a maioria das intervenções promovidas pelas grandes potências (principalmente pelos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial), podemos observar também os resquícios dessa mesma mentalidade imperialista, a partir da qual intervenções diretas e indiretas eram praticadas em locais onde os “interesses nacionais” (das potências) estavam “ameaçados”. No caso de Aliens, os interesses são da Weyland-Yutani, uma megacorporação multinacional que, além de ter construído a colônia em LV-426, deseja ansiosamente ter em mãos um espécime das criaturas alienígenas para que possam ser estudadas por sua divisão de armas biológicas, pouco importando o custo em vidas para atingir tal objetivo. Seu slogan, “Construindo Mundos Melhores”, também remete ao discurso dos Estados Unidos e do bloco capitalista, em si, durante a Guerra Fria, contexto no qual o “mundo livre” deveria defender seus ideais e levar “a democracia” para outras nações “oprimidas”, dessa forma “construindo um mundo melhor” – por sua vez, União Soviética utilizava um discurso semelhante, ainda que com uma ideologia oposta, igualmente praticando intervenções armadas, por vezes violentas, e exercendo um profundo controle sobre determinados países de acordo com seus próprios interesses, notadamente no leste europeu.
Há também uma alusão a um fenômeno comum ocorrido durante a guerra. Uma das principais perguntas que o espectador faria a si mesmo seria: por qual razão Ripley voltou ao planeta, depois de todo o horror que ela vivenciou no primeiro filme? James Cameron aponta que esse era um dos principais desafios com o qual ele precisou lidar. Nesse sentido, vemos, no início de Aliens, uma Ripley que luta para lidar com seus traumas psicológicos, com recorrentes pesadelos e sofrendo de estresse pós-traumático, de maneira similar a soldados que estiveram em combate. Pensando nisso, a Guerra do Vietnã continuou sendo uma das fontes de inspiração. Segundo o diretor:
“Acho que algumas pessoas não entenderam o ponto principal. Eles acham que ela vai porque assim poderá conseguir o seu emprego de volta, mas não é o caso. Não há quantia de dinheiro que possa fazer isso. Um dos meus maiores problemas ao escrever o filme foi encontrar um motivo para ela voltar. Tinha que ser psicológico. Uma das coisas que me interessou é que há muitos soldados do Vietnã, que estiveram em situações de intenso combate, que se alistaram para voltar novamente. Porque eles tinham esses problemas psicológicos que precisavam resolver. É como um demônio interior a ser exorcizado. Essa foi uma boa metáfora para seu personagem.”
“Can I Dream?”
Durante a Guerra do Vietnã, um ditado que sintetizava a futilidade daquele conflito se tornou comum: “foi preciso destruir a aldeia para salvá-la”. Em Aliens, algo similar acontece, uma vez que a colônia de Hadley’s Hope é completamente destruída diante da impossibilidade de vencer as criaturas alienígenas. Apesar de seu estilo remeter em muito a um filme de guerra, Aliens continua a ser uma obra de ficção científica, recheada de ação e com um toque de terror, cujos temas ultrapassam em muito a alegoria à Guerra do Vietnã. Pode-se dizer, por exemplo, que entre seus principais temas está a maternidade, representada pela óbvia relação entre Ripley e Newt, mas também entre os alienígenas e a “Rainha” (a criatura responsável pela reprodução dos aliens). No entanto, a influência do acontecimento histórico da Guerra do Vietnã como uma fonte de inspiração para a obra de James Cameron é, além de significativa, uma peça central da narrativa.
A década de 1980 foi marcada pelas diferentes percepções e sentimentos a respeito daquela guerra, terminada em 1975. Não a toa, nesse mesmo período temos o surgimento de diversos filmes relacionados ao Vietnã ou inspirados pela sua experiência:
“Como já dissemos, os anos oitenta testemunharam um projeto ostensivo de desmitificação em oposição à amnésia histórica dos anos 70, que tendia a mostrar a grandeza do mito da glória e heroísmo americano, bem como a visão do soldado americano como um “salvador” que preservaria a liberdade e democracia em todo o mundo” (LLÁCER, ENJUTO)
Nessa época, vão surgir os épicos de ação com a introdução dos “super soldados” como Rambo (Sylvester Stallone) e Braddock (Chuck Norris), cujas tramas estão direta ou indiretamente ligada ao Vietnã com um claro discurso pró-guerra. Surgem, também, outras obras que questionam a moralidade (ou a ausência dela) nas ações empreendidas naquele contexto. Na outra ponta, temos Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola; Platoon, de Oliver Stone; e Full Metal Jacket (Nascido Para Matar), de Stanley Kubrick, lançados em 1979, 1986 e 1987 respectivamente, que tornaram-se grandes clássicos do gênero e que tinham como intuito mostrar a guerra de maneira mais “realista”.
Não é coincidência que Aliens tenha sido produzido nesse mesmo período, combinando o prolífico gênero da ficção científica oitentista com a temática e a linguagem dos filmes de guerra que também marcaram aquela década. Também não é coincidência que essas obras tenham surgido nesse momento, uma vez que, a partir da política externa agressiva colocada em prática por Ronald Reagan, os EUA voltaram a realizar sucessivas intervenções militares (Granada, Líbia, Panamá – o último já sob a era Bush) no mesmo período. O cinema, por sua vez, abre espaço para ambos os discursos: seja a legitimação de determinadas ações, ou a crítica às mesmas.
Aos que nunca assistiram Aliens (ou qualquer outro filme da franquia), vale a pena tirar um tempo para ver pelo menos os dois primeiros filmes. Aos que já assistiram, talvez seja o momento de rever essa obra, quem sabe com um olhar um pouco diferente, percebendo alguns detalhes que talvez tenham passado despercebidos. E a todos que leram esse texto, é sempre bom se lembrar que todos os filmes possuem discursos, muitos deles implícitos, e observar esses discursos nos ajuda a compreender não somente a obra em questão, mas também o período em que foi produzida, quem a produziu e com quais objetivos.
São essas algumas das perguntas que nós, historiadores, fazemos a “quase tudo” à nossa volta; inclusive quando se trata de cinema.
[1] “Titanic”, de 1997, também é uma obra de Cameron.
Referências
“Coping Strategies: Three Decades of Vietnam War in Hollywood” EUSEBIO V. LLÁCER; ESTHER ENJUTO
“The Vietnam War in Film”. Acesso: 01/11/2020.
“Is James Cameron’s “Aliens” Really An Allegory Of The Vietnam War?”. Acesso: 01/11/2020.
“James Cameron on Aliens“. Acesso: 01/11/2020.
“Science Fiction: This Time It’s War!”. Acesso: 01/11/2020.
“Why Aliens is even better than Alien”. Acesso: 07/11/2020.
Lucas Modaneze é graduado em História pela Universidade Cidade de São Paulo (UNICID) e tem como área de interesse a História Contemporânea, com ênfase nos estudos sobre as Guerras Mundiais. Atua no Laboratório de Estudos e Pesquisas em História (LEPH) da mesma instituição e é um dos organizadores do site Taverna do Bloch.
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