“Ai! Ai! Finalmente, cheguei em casa, moço!” Olhei espantado para o prédio ao lado da calçada pela qual passava na Avenida Rio Branco, enquanto via um ser misterioso se dirigir a mim com essas palavras. Um prédio imponente, portaria 24 horas, ampla garagem. Jardim na frente. Idosos tomando sol atrás das grades.
“Ai! Ai! Finalmente, cheguei em casa, moço!” Trânsito frenético. Transeuntes com máscaras no nariz, outros com máscara no queixo e alguns com máscaras invisíveis na cara, desfrutando a brisa puramente poluída de nossa urbe interiorana.
“Ai! Ai! Finalmente, cheguei em casa, moço!” Na porta da loja de cosméticos, fila para comprar… cosméticos. Na esquina, um grupo ria descontraidamente, com tapinhas nas costas e olho no olho. Metade com máscara, outra metade sem.
“Ai! Ai! Finalmente, cheguei em casa, moço!” A essa altura, o prédio a que me referi há pouco, já estava relativamente distante.
“Ai! Ai! Finalmente, cheguei em casa, moço!” Aquela voz se repetia insistentemente na minha cabeça.
“Ai! Ai! Finalmente, cheguei em casa, moço!” Entro na padaria pra… comprar pão. Caminho no sentido de casa. Ando alguns metros apressadamente. Reduzo a velocidade dos passos. Andar com máscara me deixa mais ofegante. Abro a porta do prédio, passo álcool em gel nas mãos. Entro no elevador, saio do elevador, passo álcool nas mãos. Abro a mochila, pego a chave, abro a porta, tiro o sapato, deixo-o ao lado da porta, onde fica um pano com solução de água sanitária. Tiro a roupa, isolo-a num saco plástico, tomo banho, higienizo mochila, celular, carteira e o cantinho da mesa onde estavam os objetos pessoais. Despejo os pães dentro de um pote plástico e descarto a embalagem. Higienizo as mãos novamente. Nunca se sabe onde o inimigo invisível a olho nu está.
Estava com fome, mas a exaustão era maior. Preferi deitar um pouquinho. “Ai! Ai! Finalmente, cheguei em casa!”
De repente, me pego sonhando: “Ai! Ai! Finalmente, cheguei em casa, moço!” Aquela voz volta a ressoar. De quem é essa bendita voz, afinal? Era daquele moço desconhecido. Isso mesmo! Desconhecido… Mas já posso adiantar que a voz que até no sonho me ressoa não era de nenhum dos moradores daquela confortável propriedade privada cercada de grades e câmeras por todos os lados. Era a de um homem sujo, mal-cheiroso, desdentado, com fome, que sentava em sua caixa de papelão para “descansar” no passeio público, bem ao lado do portão do condomínio. Percebi uma certa ironia naquela fala. Talvez porque ainda houvesse alguma dose de consciência humana naquele corpo maltratado.
“Ai! Ai! Finalmente, cheguei em casa!” Podia eu simplesmente dizer isso, como o fiz, assim como o fazem aqueles que todos os dias saem exaustos de sua pesada rotina de trabalho. Levantei, tomei café. Comi, comi, comi. O estômago pesou, mas não me senti saciado…
Os inimigos invisíveis rondam por aí: o vírus, a desigualdade social e o embrutecimento humano. O vírus, julgam não existir, porque não se pode vê-lo a olho nu. A desigualdade social, julgam que é problema do indivíduo. Cada um que trabalhe e ascenda por meio de seus próprios esforços. E por último, o embrutecimento humano, o mais invisível deles e a causa de todos os males, segue em ritmo galopante.
O homem que finge acreditar ter chegado à sua casa, também membro da espécie humana e habitante desse mesmo planeta, embora empurrado cada vez mais para a “borda” terrestre, infelizmente, não pode contar com as mãos infinitamente sujas, porém “invisíveis” do mercado.
Muitos, enquanto isso, habitando, armados, inseguros, vigilantes e temerosos, os lugares que pagam o direito de usar, fantasiam e imaginam a segurança da fortaleza de seus castelos de papel, fingindo dividir seu mundo entre os lados de dentro e de fora. Para os problemas complexos, simples solução: para ladrão, portaria e revólver; pra pobreza, a fome, a peste, o genocídio. E pro vírus…
Sérgio Augusto Vicente é bacharel, licenciado, mestre e doutorando em História pela UFJF. Dedica-se ao estudo da história social da cultura no Brasil, abrangendo temas como trajetórias individuais e de grupos, sociabilidades, associativismo, história intelectual, história social da literatura, acervos documental e bibliográfico, patrimônio cultural, memória e educação. Professor de História e historiador. Atualmente, trabalha no Museu Mariano Procópio (Juiz de Fora – MG).
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