[Arredores] Literatura de Varanda, com Ulisses Belleigoli

Há muitos que consideram a escrita como um processo de inspiração; e não como um exercício, uma experimentação. Outros, pensam que poetas apenas poderão ser poetas; ou que cronistas só escreverão crônicas; e romancistas, eles devem se ater aos estilos de narrativa com os quais estão acostumados. Existe um autor, porém, que contrapõe todos essas premissas em sua carreira literária; e, pasmém, ele é Juizforano.

Essa semana, a Trama conversou com o Ulisses Belleigoli, autor que possui doze títulos publicados (desde poemas até romances de fantasia) e editor da Varanda. Falamos sobre a sua criação, sobre os trabalhos incipientes da mais nova editora da cidade e, claro, sobre “O Quase Último Aum”, seu livro mais recente, e segunda publicação da Varanda. Rola pra baixo pra conferir a entrevista!

Ulisses Belleigoli, autor de ‘O Quase Último Aum’
Foto: Marcus Leoni

Trama: Quais foram as suas inspirações principais para ‘O Quase Último Aum’? E como se deu o processo de transformar essas inspirações na história?

Ulisses: Então, essa ideia começou a se gestada lá em 2013. Era uma época que eu estava inquieto com a situação do país e do mundo, assustado com o avanço dos fundamentalismos (religiosos e políticos). Queria escrever um livro que falasse sobre essa dificuldade perene da humanidade: como solucionar conflitos que se iniciam quando as pessoas não sabem lidar com as diferenças entre si. E, junto a isso, pensei que queria fazer uma saga para adolescentes e jovens adultos – talvez motivado pela minha crença de que uma geração com mais imaginação para novas soluções pudesse ser leitora mais sedenta dessa história.

T: Então foram sete anos do início da escrita até a publicação; porém, você publicou outros trabalhos nesse meio tempo. Como você concilia essas diversas produções no seu dia a dia de trabalho?

U: É bem assim mesmo. Vou escrevendo várias coisas ao mesmo tempo. Talvez isso seja herança do meu perfil de leitor, pois leio vários livros ao mesmo tempo. Levo, às vezes, mais de um ano para terminar de ler um livro. Com a escrita, é bem parecido; vou fazendo anotações, desenhos, escrevo pequenos trechos. Aí, de repente, sinto que está na hora de finalizar um escrito. Então, ele toma a frente. É um processo bem lento, mas bem gostoso.

T: E como vai a sua inquietação com o avanço dos fundamentalismos agora, que o livro foi lançado?

U: Só cresceu. Eu sempre fui muito pessimista com esse cenário. Lembro de, em 2004, ter uma conversa com amigos sobre esse movimento. Alguns acharam que era delírio – tínhamos acabado de eleger um governo de esquerda, as pautas progressistas estavam andando. Hoje, minhas preocupações daquela época parecem até ingênuas. As coisas estão caminhando a passos largos para tragédias cada vez maiores. A meu ver, estamos muito longe de saber lidar com o fascismo, com a crueldade do neoliberalismo, com a desigualdade social programada pelo capitalismo. A vida vale muito pouco, talvez bem menos que há alguns anos atrás.

T: E como você percebe o seu trabalho, enquanto escritor gay, nesse cenário?

U: Eu adoro ser um escritor gay, ou, nas minhas palavras, um escritor veado. Claro, temos discutido muito essas alcunhas, o que elas representam, o que elas reproduzem, o que elas agregam ou segregam. Por exemplo, ninguém me chama de escritor branco, ou escritor de classe média (características essas que talvez tenham muito mais marcas no meu trabalho). Mas eu gosto muito quando alguém se refere a mim como um escritor veado. Gosto de escrever personagens gays, gosto de histórias que tenham personagens gays. Minha vida é assim: cercada de pessoas LGBTQIA+. Decerto, tenho mais facilidade em escrever homens-homo-cis, mas ultimamente tenho me aventurado a incluir outras letras desse espectro. “O quase último Aum” é um exemplo disso. Teremos muitos personagens fora do padrão heterocisconvergente; até porque muitos vivem em outro planeta. E nem todo o universo precisa ser tão careta como a Terra.

T: De volta a “O Quase Último Aum”, você comenta que escreveu visando um público adolescente; e você já escreveu obras tanto para o público infantil quanto para o público literato. Como funciona o trabalho com essas diferentes linguagens, para você? É um processo natural, ou foi uma habilidade que você adquiriu com a prática da escrita?

U: Isso não é uma coisa muito bem definida na minha cabeça. Eu nem sei dizer se sou bem sucedido escrevendo para esses diferentes públicos, se sei “modular a linguagem” para cada um. Como contador de histórias, na lógica da oralidade, trabalho com muitas faixas etárias e níveis de letramento, o que exige, sim, uma esperteza na escolha do repertório e da linguagem. Mas, por outro lado, sempre penso em como essas fronteiras são muito tênues. Em como a linguagem não respeita muito esses limites.

T:  Você mencionou a lógica da oralidade; como você sente que a experiência como contador de histórias, tanto no grupo do Granbery quanto em outros projetos, influencia ou influenciou nos seus temas e formas de escrita?

U: Eu acho que a principal influência é a de repertório. Ouvir muitas histórias é o primeiro passo para ser um contador de histórias. É também um efeito, sabe? A gente vai se enchendo de histórias, e elas vão se misturando dentro da gente. Uma história de tradição oral do oriente médio se junta com um romance russo do século XIX e com um poema da Adélia Prado; aí não cabe mais dentro da gente, tem que sair em forma de invenção, de novidade. É a antropofagia.

T: Você, além de escritor e contador de histórias e jornalista, também é psicanalista. Mas você começou a escrever muito antes de se formar, certo? Como você entende o peso das suas formações nas suas obras? Você vê diferenças no núcleo duro, na sua motivação de escrever, entre antes e depois?

U: Ah, isso vai mudando muito. Eu vejo isso muito claramente. Que os meus ofícios e paixões vão se infiltrando na minha criação literária. De que o meu primeiro romance tem lá, meio explícito, todo meu interesse pela filosofia. Esses últimos (até mesmo os infantis) tem os traços da lógica do inconsciente, já efeito da clínica psicanalista. É legal olhar para trás e ver isso, nossas fases. É como se a gente tivesse a chance de arquivar um pouquinho da efemeridade das ideias e dos sentimentos que temos em relação as ideias.

T: Tendo isso em mente, como foi o processo de encontrar a editora para “O Quase Último Aum”? Você tinha em mente que queria publicar com uma editora que tivesse uma linha editorial específica? E como você chegou à Varanda, uma editora tão recente no mercado?

U: A Varanda, na verdade, é a minha editora (risos). Enfim, a criação da Varanda tem, em certa medida, relação com “O Quase Último Aum”. Eu vinha produzindo vários trabalhos, não só esse, mas especificamente ele, que eu queria publicar de forma independente – eu gosto muito, e tenho gostado cada vez mais dessa ideia de uma publicação independente. E aí conversei com o Deco, depois com o Guilherme, depois com uma outra amiga que acabou saindo do projeto, depois com a Laís, e aí a gente criou a Varanda para fazer os nossos próprios projetos – então, a Varanda é também um fruto de nós quatro, que somos criadores de conteúdo. Nós somos pesquisadores, artistas… e a Varanda surgiu para dar vazão às nossas criações; e a gente está muito feliz que “O Quase Último Aum” é o primeiro projeto de um de nós, que nós nos chamamos de ‘anfitriões’, a ser lançado pela Varanda.

T:  Enquanto anfitrião e criador de uma editora, como funciona todo o processo, para vocês, de delimitar o que e como publicar?

U: A Varanda tem sido uma empreitada de descoberta, porque cada um de nós é de uma área; o que nos une é o fato de sermos leitores. E nisso, eu tenho já alguma experiência com a questão editorial; a Laís e o Guilherme são pesquisadores, cada um na sua área; o Deco tem uma experiência empresarial… e a nossa ideia, o que a gente vem fazendo, é decidir [o processo] para cada projeto. Esse é o entendimento que a gente foi criando, de que cada projeto, seja ele literário, ou dos podcasts, ou das peças de teatro, cada processo requer da gente, como seres humanos e como criadores, um caminho diferente; então a gente está bem aberto para cada coisa que chega, sejam nossos projetos internos ou projetos externos, e a cada um, a gente pensa se a consegue fazer, se tem tempo, se tem know-how, se a gente não sabe mas quer aprender… E tem sido essa, a experiência, de tratar cada projeto com a sua particularidade. E eu acho que isso vem muito da minha experiência editorial, de que cada livro é um livro. Tem livro que, às vezes, eu penso que talvez mereça inscrição em um edital público; ou que mereça eu procurar uma editora; ou esse aqui eu vou fazer independente; nesse outro eu quero ilustração; e naquele eu penso uma edição mais simples… E é isso. Cada coisa que a gente quer dizer para o mundo precisa ser acolhida e tratada de uma maneira diferente.

T: E qual você diria que é o conceito cerne da Varanda? O que torna as publicações da Varanda dela?

U: Essa pergunta é bem difícil. A gente se faz muito ela internamente, nós quatro; o que é o nosso perfil, o que a gente publica. Mas, primeiramente, a gente publica as nossas coisas; e, depois, a gente publica o que nos interessa – o que é um conceito muito vago, mas como nós somos uma editora pequena, os quatro sócios são os quatro funcionários da Varanda, a gente vai atrás das coisas que nos interessam pessoalmente. Algumas coisas até chegam pra gente, mas muitas a gente vai atrás também – que foi o caso do nosso primeiro livro, da Raíssa Varandas, que foi minha aluna na oficina de criação literária da Varanda; eu fiquei muito encantado com o texto dela e apresentei pros colegas, falando que a gente tinha uma autora maravilhosa e propondo que a gente publicasse.

Cada um desses trabalhos é um processo, mas eu não sei se a Varanda já tem uma identidade, acho que não tem, ainda. Talvez como uma criança, que tem que crescer um pouquinho pra gente começar a entender como ela se comporta, do que ela gosta, do que ela não gosta, a Varanda tenha que dar uns passos, cometer alguns erros, alguns desvios, ver pelo que ela se apaixona, para que a gente possa falar um pouco sobre o que é a Varanda e como ela se define.

T: Se um autor quiser publicar com a Varanda, o que ele/ela/elu precisa fazer?

U: Por enquanto, como a gente está com a nossa agenda bem preenchida para 2021, a gente ainda está pensando em como vamos abrir esse projeto, para que as pessoas também possam procurar a Varanda; porque, até agora, os nossos projetos foram coisas que nós identificamos enquanto coisas que a gente queria fazer, mesmo com pessoas externas – e fizemos os convites, as parcerias, enfim, foi a partir de conversas, de textos que a gente já conhecia. Então, a gente está tentando que, ao longo de 2021, a gente se programe, vendo também como a Varanda cresce em termos de trabalho e financeiros – para que a gente consiga contratar pessoas, também -, e que, em 2022, a gente já tenha um política mais bem definida sobre como incorporar novos projetos.

T: Agora que você tem uma editora própria, você pretende relançar os seus livros publicados anteriormente por ela? Se sim ou se não, por quê?

U: Por enquanto, não. Talvez, como eu tenho um livro cuja edição já se esgotou, eu pense em reeditá-lo pela Varanda. Mas como eu tenho muita coisa nova ainda – estou escrevendo um quadrinho, alguns livros de poesia -, eu penso em lançar primeiro essas coisas novas. E, quem sabe, no futuro, quando outras edições de outros livros se esgotarem, eu pense em relançá-los pela Varanda.

T: Você já tem um livro programado para ser publicado no ano que vem, uma parceria com o Vinícius Goro, dentro de uma coleção idealizada dentro da Varanda. Você pode compartilhar um pouquinho sobre como é esse projeto, tanto da coleção quanto da parceria?

U: Esse projeto com o Vinícius Goro já está comigo há muito tempo. É um quadrinho, chamado “Morte Desafi(n)ada”; e eu vou escrevendo essas histórias, e o Vini vai ilustrando. Então, tem sido uma experiência muito rica para mim, porque escrever um roteiro de quadrinho é muito diferente [de escrever um romance]; você escreve para uma outra pessoa criar em cima daquilo, então tem um diálogo – até porque o Vinícius me propõe coisas, também, como adicionar paineis, diminuir falas, mudar ângulos de diversos quadros… E nisso, tem sido um desafio.

Enfim, é uma história que eu trago comigo já há algum tempo e ela está tomando forma nos desenhos do Vinícius – e eu acho isso incrível. Eu amo trabalhar com outras pessoas, não é a primeira vez que eu faço um projeto com ilustradores, mesmo; eu adoro ver como uma coisa que eu escrevo vira uma música, um outro texto, uma fotografia, os quadrinhos… E esse projeto, a gente espera lançá-lo em 2021; mas é um processo longo e trabalhoso, é um quadrinho de mais de cem páginas. Então é bastante trabalho que o Vini tem para desenhar tudo.

T:  Qual pergunta você gostaria que eu tivesse feito e não fiz? E qual a resposta para ela?

U: A pergunta seria: “Ulisses, de todos os seus livros, qual você mais gosta?”; e eu responderia: “O próximo”.

 

‘O Quase Último Aum’, título mais recente de Ulisses Belleigoli, já está à venda no site da Varanda.


Sobre a Entrevistadora:

Carol Cadinelli é jornalista, apaixonada por palavras. Escreve, edita, revisa, traduz e, vez ou outra, fotografa. Atualmente, é editora na Trama, Social Media na Peregrina Digital e escritora nas horas vagas.



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Um comentário

  1. Olá Ulisses! Bom ver o seu caminhar, de você, pequeno, ao contador de histórias. Também sigo caminhando, descobrindo e também criando literatura. Principalmente poemando. Me libertando de amarras que criava para mim mesma. A criatividade está aí, em diversas trilhas que brotam livremente do cotidiano criador (se abertos para o agora). Caminhos sem fim, perguntas sem resposta, jeitos de criar coragem, tirar culpas, resignificar o mundo. Parabéns por estar se eternizando nas produções, sendo o que é, por inteiro, através das leituras, das releituras, dos companheiros na criação. Como dizia o Ferreira Gullar, a vida é pouco, por isso, a arte. Um abraço!

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