Herança – Capítulo 12: Quando se perde uma alma

– Filho da puta, desgraçado. Quero ver ele bater em alguém do tamanho dele. Ele é covarde, mãe.

– Filho, não vai adiantar nada você ficar aqui. Você tem que ir pra escola. Leva a Aurora.

Ele estava jogado na cama, com sua consciência consumida entre os lençóis. Ouvia fragmentos de vida pela casa. O filho no quarto ao lado ressonava cheio de feridas pelo corpo. Naquele instante, Augusto saía de mãos dadas com Aurora em direção à escola. Aufredo ficava. Descansava da noite anterior, num pesadelo de mãos e costas no muro.

Um zumbido percorria a cabeça de Ricardo. Ele começou, entre dormindo e acordado, a se recordar das coisas. Sua boca seca consumia o líquido de seu corpo, num estalo de língua e lábios ressecados. Ao longe, um galo cantava anunciando a manhã. O sol refletia as sombras no chão, de tudo e de todos, num afã de tentar entender a alma e a essência da vida. O cheiro do café se fazia presente. E o zumbido em sua cabeça se misturava às cenas fragmentadas da noite anterior: “É só pilotar a moto, você vai ver como é fácil.” O filho jogado no chão, inerte; ele com as mãos entre a cabeça. Noêmia chegando amparada pelos vizinhos, que, num respeito por aquela mulher, não chamaram a polícia. Respeitaram a dor daquela mãe, a sua inquietação de ter, ao mesmo tempo, dois grandes problemas: o filho e o marido. Um provocando a desgraça do outro. E ela tendo que amparar, entender e absorver toda aquela agitação. E o zumbido não o deixava mais dormir.

Levantou-se, saiu da cama. Estava seminu. Passou pelo quarto das crianças. A porta estava encostada, parou ali por alguns segundos. Encarou a sua própria humilhação. Sentiu vontade de vomitar, uma ânsia lhe percorreu todo o corpo, não conseguia entender aquele fragmento de lembrança do filho desfalecido. Não conseguia entender por que isso não era somente um grande pesadelo. Era a mais pura e cristalina verdade, a verdade que ele teria que encarar pelo resto de sua vida. Correu para o banheiro, jogou-se na privada e enfiou a cara na latrina, escorrendo gosma pela boca. E o zumbido não o deixava, o inquietava, junto aos fragmentos da noite anterior e às sombras produzidas pelas luzes artificiais dos postes pendurados cortando o céu. Levantou-se com certa dificuldade. Limpou vagarosamente a boca com o braço esquerdo; e, com a outra mão, abriu o chuveiro e deixou escorrer água pelo seu corpo.

No princípio, escorreram gotas frias – como os pensamentos que vinham à sua mente, sobre seu patrão falando a ele da demissão, o deixando sem chão. Depois, as gotas se aqueceram – como o coração de sua mulher, arrefeceram os seus músculos, deixando-o inundar-se por aquela água. Passou as mãos pelo rosto, tentando se limpar, os fragmentos ruins de memória pelo ralo; mas era vã, a sua tentativa. Ele via as gotas escorrendo e fluindo até encontrarem o ralo. Era como sua vida, sentida naquele momento como uma aberração que só caberia mesmo ao esgoto. Como aquela água que se misturava ao seu corpo e o enchia de prazer. Pegou o sabonete, e uma fragrância adocicada misturou-se ao zumbido de sua cabeça. A dor foi aumentando e, à medida que aumentava, ele conseguia ouvir todos os barulhos ao redor. Ônibus passando na rua apinhado de almas mortas; cachorro latindo no vizinho; papagaio gritando o hino de um time ensinado pelo seu dono; o barulho da máquina de costura de sua esposa, que o fez lembrar-se da sua dor, não aquela dor do zumbido, mas a dor de não ter mais emprego, de não ter mais vida profissional, de estar jogado na existência longe de seus sonhos mais sinceros. A mulher teria que se virar muito nas suas roupas, em suas tesouras e sua costura, varando noites pra trazer algum alento pra aquela família fragmentada na alma de um ser fragilizado e fraco. Não tinha como ele se desvencilhar daquilo, poderia tomar quantos banhos quisesse. Aquele cheiro azedo de vida estragada não o deixaria mais. Não escorreria pelo ralo, como ele estava querendo. Não havia jeito. Ele estava fadado a pilotar a moto e a cair no esquecimento. Afundar-se na lama que sua consciência transformara.

Como eu sei disso tudo? Como consigo trazer tantos detalhes aos comentários sobre o que estou contando? Tive fontes precisas. Noêmia, Alciléia e tantos outros me contaram tudo. Pode não ser algo imparcial, mas o que é imparcial nesta vida? As pessoas envolvidas expressaram as suas dores e as suas angústias para mim. Contaram o que quiseram, o que elas entendiam da vida. O resto, eu vou preenchendo de acordo com as minhas experiências. E, naquele momento, eu sabia o que atormentava Ricardo: um misto de coisas e fragmentos, escorrendo entre seus dedos como aquela água, como a sua vida fedida e estragada. “É só pilotar a moto.” Ricardo veria o que o esperou. Mas antes, ele teria que trabalhar na fábrica de biscoitos. E teria que encarar novamente todas as pessoas que testemunharam a sua desgraça, o início da sua desgraça e seu tormento, a sua vida jogada no muro chapiscado como o seu próprio filho. Essa é a sua realidade, longe de seus sonhos de outrora. E o barulho da máquina de costura aumentava, junto com o zumbido agudo na sua cabeça.

Depois do banho, não teria salvação. Teria que viver aquilo, conviver com aquilo e aguardar a sua sina. E o pior seria novamente encarar sua família, sua mulher e seus filhos. Os olhos avermelhados latejavam por dentro e consumiam sua alma marejada de dor, que escorria com as gotas quentes pelo corpo de Ricardo, chegando ao chão e ganhando o ralo.


Darlan Lula é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Escritor, autor de cinco livros, entre prosa e poesia. Conheça mais sobre o autor e seu trabalho.


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