Ainda estou dormindo, e uma música animada invade meu sonho como se fosse parte dele. Alguns minutos depois, percebo que é o despertador. Quem nunca passou por isso?
O despertador em questão é uma caixa de som deixada estrategicamente na porta do quarto tocando “Fazendinha”, do Mundo Bita (nosso despertador em 95% dos dias).
Abro os olhos e, por um segundo, acho que vou acordar no meu quarto, até me ambientar e lembrar que na verdade estou num colchão no chão, enrolada em um saco de dormir, outras três pessoas em volta de mim. “Caramba, eu estou na África”; foi esse meu pensamento em todas as manhãs que acordei lá.
A música não para enquanto restarem pessoas deitadas; assim, só me resta levantar logo. O mau-humor que surgiria por ser acordada cedo com uma música alta dá lugar à alegria saudar as pessoas que estão nessa aventura comigo: um bom dia cheio de carinho, amor e entusiasmo.
Os líderes do grupo já estão de pé, preparando o café da manhã. Não podemos começar o nosso dia sem comer o tradicional “kuduro”: um pão parecido com uma baguete, mas mil vezes mais gostoso. Como o pão tem que estar na mesa quando todos acordam, é preciso ir comprá-lo bem cedo. Assim, só consegui ir comprá-lo em um dia durante a viagem: ainda com muito sono e de estômago vazio, me lembro de entrar no carro com o sol bem baixo, mas forte. É inesquecível a sensação gostosa de acordar cedo o suficiente para ainda estar frio, apesar de o sol já estar brilhando. A padaria não ficava muito longe da casa; mas para alguém extasiada com a experiência, o caminho pareceu prazerosamente longo.
A padaria é um barraco bem precário, como muitas construções de Bissau. Dentro do barraco, não há nada além de um grande forno feito diretamente no chão, como um iglu de terra. Como chegamos relativamente tarde, não tinha mais pão fresco; então, escolhemos os pães que foram deixados para trás pelos outros compradores. A vitrine para escolher os pães? Um saco no chão com todos os pães em cima. Se você desse sorte, você pegava um kuduro sem o “tempero especial” da poeira.
Antes de tomar café, todos os voluntários devem estar praticamente prontos para enfrentar o dia, de banho tomado e a roupa do dia. Quando todos estavam prontos, era hora de alimentar a alma e mente antes do corpo – numa missão humanitária, corpo, mente e alma trabalham juntos o tempo todo.
Todas as manhãs, fazíamos nossa reunião. Sentávamos juntos, presentes no momento, sem distrações; apenas a atenção plena no que estava acontecendo. Era quando nós conversávamos sobre como seria o dia, fazíamos nossa oração para que tudo ocorresse bem e cantávamos nossa música. Cada dia era uma: em alguns dias, músicas em crioulo (idioma nativo de Bissau); em outros, músicas do Brasil. A que mais me marcou foi “A Começar em Mim”, da banda Vocal Livre; impossível ouvir sem sentir saudade.
Orações feitas e barriga cheia, era hora de fazer o que fomos para lá fazer: ajudar as pessoas.
Por mais que cada um tivesse sua função bem esclarecida, cada dia era uma surpresa. Nunca sabíamos se o dia seria incrível ou muito difícil; e, na maioria das vezes, era ambos. Para aqueles que nunca foram voluntários, pode ser difícil entender como alguém consegue se sentir tão realizado em meio a tanta precariedade, mas eu posso explicar. O que dá energia para que os voluntários se levantem todos os dias durante uma missão com um sorriso no rosto e nada mais do que amor no peito: a felicidade das pessoas que são ajudadas.
Não importa qual seja sua função em uma missão, você sempre estará em contato com pessoas. Seres humanos, como nós, que não possuem nada além de gratidão para dar em troca dos nossos serviços.
Essa gratidão chega a nós através de sorrisos, carinhos, brincadeiras e até mesmo favores. Se eu aprendi uma coisa sobre Bissau e missões é que as pessoas que estão com você (e que entendem o real propósito de uma viagem missionária) nunca vão medir esforços para te ajudar e fazer a viagem ainda mais especial. Foram incontáveis as vezes que alguém me agradeceu, mesmo que só com um sorriso.
Quando fomos à Ilha de Galinhas, não nego: fiquei apavorada. A viagem durou três horas, com apenas um motor no barco, sem rádios para comunicação, nem um teto para nos cobrir do sol. Mas quando chegamos à ilha, vi os moradores pegando todas as nossas coisas (malas pesadas, cadeiras odontológicas, até mesmo geradores), colocando tudo em cima do ombro e carregando tudo para nós. Eu desci do barco sem nada nas mãos, pois eles fizeram questão de nos ajudar.
Assim que chegamos mais perto da praia, uma imagem que me encheu de alegria: crianças correndo em nossa direção, cada uma procurando uma mão para segurar e nos levar até a terra, com seus baldes cheios de caranguejos capturados por elas mesmas. A alegria no rosto delas é indescritível. Elas nem nos conheciam e já nos amavam, assim como nós amávamos a elas. Fazer missão é isso: aprender que o amor pode ser instantâneo e espontâneo.
Passar três dias numa ilha onde nenhum missionário pisava há dois anos pode parecer aterrorizante. Mas, em missão, as pessoas fazem qualquer coisa tornar tudo melhor.
Nossa casa não tinha luz, nem chuveiro, nem torneiras, e mal tinha janelas. Era uma casa de concreto, sem acabamento, sem piso ou forro no teto, no meio do mato. Ao lado, um poço, de onde nós tirávamos nossa água para tudo. Quando cheguei à casa, foi um choque; para nossa sorte, havia uma casa vizinha onde moravam várias crianças, que faziam nossa alegria todos os dias.
Fazer uma missão em outro continente pode ser assustador. Eu enfrentei muitos medos que sempre tive. Porém, aprendi a valorizar coisas básicas do nosso dia-a-dia que sempre passaram batido – desde a água quente do meu chuveiro até o sorriso e o carinho que nós temos pelas pessoas que vivem com a gente. A gente pode não perceber, mas tudo o que nós temos nessa vida são as pessoas que nos cercam. Os bens materiais vêm e vão; como a gente interage com os outros, como nós vamos tocar a vida daquela pessoa é o que realmente faz a diferença, porque o ser humano é mutável, nos construímos todos os dias a partir das nossas experiências. Se eu puder fazer uma pessoa melhor, que seja só dando um bom dia, eu vou fazer, porque foi isso o que eu aprendi. Aqui ou na África, missionária: é isso que eu sou.
Mariana Sanches é jornalista, fotógrafa e escritora por amor.