Essa fala, em geral, vem acompanhada de um ar de pesar ou de conformismo: não tem jeito, é a triste realidade, isso não vai mudar…
Será?!
Me chamou a atenção uma postagem na internet: uma pessoa em situação de rua se encontrava com um ferimento infeccionado em uma de suas pernas. No texto, a postagem falava sobre natal, ano novo e o cuidado e a compaixão com o próximo.
Necessário, clichê, “só discursos”. A definição dessa postagem a você, leitor, pode parecer familiar ou estranha, mas fato é: atos de bondade são escassos e têm sido retratados como atos heroicos.
Em contrapartida, quando alguém se posiciona com um ato honesto, fala-se sobre a necessidade de uma postura contínua, que o ato em questão é o mínimo e não passa da obrigação do indivíduo contribuindo para uma sociedade mais justa, etc.
No ano em que tivemos nossa civilidade confrontada não apenas por um inimigo invisível, mas também por nós mesmos e por nossos pares, a frase “é a triste realidade” é dolorida de se ler.
A triste realidade é que estamos tão cansados que já não somos capazes, em nossa grande maioria, de externar boas ações aleatoriamente.
Somos seletivos, cuidamos dos nossos: aos conhecidos, o mundo; aos desconhecidos talvez algumas moedas, um prato de comida. Mas penso que isso, em si, não é tão culpa nossa…
Somos condicionados a acordar cedo, dar conta de tudo, suportar pressões, metas, desprezo e irrelevância. Isso tudo nos consome a “civilidade”. Mas o que é civilidade, afinal?
Em uma rápida pesquisa no Google, civilidade é: o conjunto de formalidades, de palavras e atos que os cidadãos adotam entre si para demonstrar mútuo respeito e consideração. Em uma pesquisa menos rápida, já ligando a ‘civilidade’ à ‘civilização’, temos que, de acordo com Johan Huizinga, existem três pilares a serem percebidos quanto a constituição de uma civilização:
- Certo grau de domínio da natureza física através de boas técnicas científicas e industriais.
- Um indispensável equilíbrio entre o progresso técnico e o domínio do homem sobre a natureza física, e um correspondente progresso moral e o domínio do homem sobre a sua própria natureza espiritual.
- A existência de um ideal comum, como característica da feição espiritual de uma época ou de um povo.
A partir daí: a quantas andamos, como civilização?
- De fato, temos dominado – e devastado – a natureza física através de técnicas científicas e industriais questionáveis.
- Não temos equilíbrio entre nosso progresso técnico. A maneira como dominamos a natureza hoje é questionável, vide as diversas crises ambientais e acidentes que causaram danos irreversíveis (ou longos demais) ao ecossistema afetado por nossa segura e ultramoderna tecnologia. Além de todo esse caos físico, será se temos tido avanços notórios no progresso moral e nossa natureza espiritual?
- Em um mundo globalizado, nosso ideal comum é quase inexistente, e tem sido combatido com força por aqueles que não acreditam em um mundo “Global”.
Voltando ao início: ainda me dói lembrar dos textos enormes de pessoas que justificam a negativa em ajudar o próximo. Percebi que as pessoas, ao darem esmolas ou ao contribuírem com alguma casa de caridade, esperam que seu dinheiro seja como os feijões mágicos. Desejam que o efeito da ação seja instantâneo, livre de trabalho, de desgastes. Tem que haver uma solução mágica, para que o resultado caiba nos 15 segundos do stories do Instagram.
Passamos os dias nos questionando sobre os modelos de produção, sobre o desgaste da produtividade, vendo colegas com sofrendo com burnout e outros reflexos da nossa exaustão; mas na hora de sermos diferentes de todo o processo – que nos torna insensíveis como as máquinas -, repetimos o que nos foi imputado desde nossos primeiros passos.
Parece estranho, mas se observarmos bem, nos tornamos máquinas repetidoras dos atos que nos sufocam. Ecoamos, então, esse sufoco aos marginalizados, àquelas pessoas que perderam alguma oportunidade ou que tiveram uma vida toda longe de qualquer chance de “ser um contribuinte do sistema”.
Após cada texto longo comentando a foto sobre “experiências de um dia” em clínicas de reabilitação, culpando sempre o indivíduo que possui alguma dependência química, vinham muitos com a frase mais mortal, fria, desrespeitosa e que acena para uma civilização não tão civilizada: “É a triste realidade”.
Como podemos questionar o processo de alguém que não mude da noite para o dia?! Nós mesmos temos o problema de repetir os mesmos erros ao longo da vida com diversas pessoas diferentes. Ainda assim, achamos que estamos melhorando e nos libertando de algum “defeito”.
Parece que, em dias tão sombrios, quem tem apertado o gatilho nas linhas de frente não são os opressores, somos nós. Temos nos rendido à indiferença e ao instantâneo.
Parece que nos tornamos máquinas, achando que somos nossos smartphones e, assim, basta baixar uma atualização ou desinstalar um aplicativo para nos tornarmos melhores. A verdade, porém, é que todos nós sentimos as dores do crescimento: os dentes caindo, os joelho ralados grudando nas calças. Todas essas dores nos lembram de que a vida é um processo demorado; ou você parou de andar de skate, de subir em árvores, de descer a ladeira de rolimã depois do primeiro acidente?
Pessoalmente, eu não tenho problemas com a tecnologia; ao contrário, gosto muito. Através de dispositivos que possuo, eu conheci pessoas incríveis que têm mudado a minha maneira de enxergar a vida, me ajudado a ser uma pessoa melhor, a superar medos, a pensar e assumir formas de ajudar pessoas que tem sofrido dores inimagináveis dentro de seus próprios lares. Porém, isso tudo parece, por vezes, só um jogo que desinstalamos de nossa interface quando cansamos. Máquinas cansam?!
Cada vez mais, sinto que somos a própria rebelião das máquinas, onde aquele que demonstrar empatia será crucificado por não ter feito mais do que a sua obrigação, enquanto permanecemos alimentando algoritmos e apedrejando os diferentes até que não exista diversidade.
Kariston França é amante de pizza. Palestrante desmotivacional, ex teólogo, professor, músico que já integrou um famoso grupo de pagode 90. Tenta seguir a vida escrevendo na Trama em mais seis projetos paralelos.