Dia da Visibilidade Trans: 175 pessoas foram mortas no Brasil em 2020 em razão da transfobia

Pelo menos 175 pessoas trans foram mortas no Brasil no ano passado, em razão da transfobia — um aumento de 41% em relação ao levantamento do ano anterior, colocando o país no triste topo do ranking mundial deste tipo de crime.

O número tende a ser ainda maior se considerada a subnotificação dos casos e a falta de dados oficiais.

Os dados constam de dossiê divulgado nesta sexta-feira (29), Dia da Visibilidade Trans, pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA).

Foto | UNFE

Pelo menos 175 pessoas trans foram mortas no Brasil no ano passado, em razão da transfobia — um aumento de 41% em relação ao levantamento do ano anterior, colocando o país no triste topo do ranking mundial deste tipo de crime. O número tende a ser ainda maior se considerada a subnotificação dos casos e a falta de dados oficiais. Os dados constam de dossiê divulgado nesta sexta-feira (29), Dia da Visibilidade Trans, pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA).

Saman Ferreira, um homen trans negro de 23 anos e defensor de direitos humanos, relata o medo da violência e das ameaças. “Ninguém nunca me agrediu fisicamente. Não com socos, tapas e coisas assim. Mas a violência verbal que eu sofro constantemente acaba sendo tão dolorosa quanto — e eu já passei por agressões desse tipo em diversos espaços e momentos, como nos ônibus ou em banheiros públicos, por exemplo. Eu sempre tento fugir dessa violência porque tenho medo. Não costumo confrontar, porque eu entendo que por mais que a gente tenha de lutar pelos direitos humanos e, sobretudo pelos direitos das pessoas trans, a gente precisa permanecer vivo pra isso”, conta.

Keila Simpson, representante da ANTRA, ressalta que o número de mortos representa uma vida interrompida pela transfobia. “Estamos falando de algo que choca o mundo todo. De acordo com o nosso levantamento, no ano passado o Brasil ficou mais uma vez no topo do ranking mundial de assassinatos de pessoas trans, pelo 13º ano consecutivo. Essa alcunha de país que mais mata pessoas trans no planeta precisa acabar”, afirma.

O detalhamento dos dados do dossiê expõe também o racismo estrutural e a violência de gênero no Brasil. De acordo com a ANTRA, 100% das mortes reportadas são de travestis e mulheres trans, ou seja, que expressam o gênero feminino, e pelo menos 78% foram identificadas como pessoas negras. A vítima mais jovem registrada tinha apenas 15 anos – marco que foi quebrado já na primeira semana de 2021, quando uma adolescente trans de apenas 13 anos foi espancada até a morte no Ceará.

Segundo o dossiê da ANTRA, 77% dos crimes que levaram a mortes de pessoas trans no ano passado foram executados com algum traço de crueldade.

Os resultados mostram que a pandemia da COVID-19 não amenizou a violência contra pessoas trans. Pelo contrário: os números aumentaram nesse período. Em relatório apresentado em dezembro de 2020 pelo especialista independente da ONU em orientação sexual e identidade de gênero, Victor Madrigal-Borloz, apontou que a pandemia tem tido um impacto desproporcional sobre a população LGBT.

No contexto de isolamento e distanciamento físico, o espaço doméstico pode ser particularmente hostil para pessoas trans. Além disso, grande parcela dessa população sobrevive do mercado informal e não tem condições financeiras mínimas para seguir os protocolos de saúde, sendo forçadas a uma exposição maior ao vírus.

A vulnerabilidade se agravou com a pandemia, mas não é novidade. Mulher trans de 31 anos, Suzane Rodrigues conta como a falta de apoio da família tornou a sua vida bem mais difícil depois que ela se assumiu, há quase duas décadas. “Eu me descobri uma mulher trans aos 12 anos de idade. Naquela época, eu vivia com minha avó e foi bastante complicado, porque ela me tirou diversas coisas, me proibiu de andar com as meninas, me levou ao psicólogo, ao psiquiatra, achando que eu estava ‘maluca’”, conta.

“Decidi sair de casa aos meus 16 anos e naquele momento escutei que as portas nunca mais estariam abertas para mim. Fui viver a minha vida e passei muitas dificuldades. Eu tive que vender o meu corpo para me sustentar, fazer coisas que eu jamais gostaria para não morrer de fome”.

Suzane Rodrigues

Saman Ferreira explica que uma das principais formas de violência que ele enfrenta é o desrespeito ao seu nome e à sua identidade de gênero. “Além disso, eu sou um homem trans negro e o meu corpo é um corpo desafiador para as pessoas. O simples ato de transitar é um desafio para nós”.

“Antes da pandemia, eu passava a maior parte do meu tempo dentro de uma instituição acadêmica, e estar nesse espaço, sendo uma pessoa negra e trans, é desafiar a hegemonia que ali existe”, relata.

Saman lembra que o perfilamento racial que promove a discriminação de homens negros no Brasil também atinge homens trans negros e cria uma camada adicional de medo e desafios em suas vidas. “Eu tenho medo de andar de ônibus à noite, medo da polícia, medo de onde eu vou, se vou poder abrir uma sacola em certos lugares. São coisas que provavelmente homens trans brancos não vão passar, então é sempre importante demarcar esse meu lugar enquanto homem trans negro”.

Apesar dos desafios, Suzane e Saman transformaram — e transformam diariamente — essas más experiências em resiliência e força para lutar pelos próprios direitos e de seus iguais. “A visibilidade trans não pode se resumir a uma data de dia único. Deveria ser o ano todo, porque nós, pessoas trans, precisamos ser vistas, respeitadas e acolhidas nos 365 dias”, diz Suzane.

“Desde que eu comecei a pensar em lutar pelo direito das pessoas trans eu tenho vontade de desistir todo dia. Porque é violência demais, porque é muito cansativo você ficar batendo na mesma tecla e sentir que as coisas nunca avançam e melhoram. Mas o que me faz continuar lutando é pensar que outras pessoas possam não passar pelas coisas que eu passo e que não tenham tanto medo quanto eu. Que não precisem sofrer violência nas escolas, na faculdade, no transporte público, nos banheiros”.

Saman Ferreira

“Para quem ainda carrega qualquer tipo de preconceito, transfobia, eu deixo apenas um recado: limpem seus corações”, pede Suzane.

Livres & Iguais — Em julho de 2013, o Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) lançou a ONU Livres & Iguais – uma campanha global de informação pública das Nações Unidas com o objetivo de promover direitos iguais e tratamento justo para pessoas LGBTI.

Saman e Suzane participaram, em 2019, do projeto TransFormação, em Salvador, na Bahia. Promovido pela campanha Livres & Iguais da ONU no Brasil, o TransFormação ofereceu oficinas de capacitação, deu acesso a cuidados com saúde e realizou um programa de mentorias, entre outras atividades, com 23 pessoas trans de comunidades locais.

Matéria originalmente publicada em Nações Unidas Brasil em 29/01/2021 – Atualizado em 22/01/2021.


A ONU (Organização das Nações Unidas) é uma organização internacional formada por países que se reuniram voluntariamente para trabalhar pela paz e o desenvolvimento mundiais.


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