Nos últimos tempos, falar sobre sexualidade e sexo tem sido um grande desafio. Muitas vezes, parece que ensaiamos um retorno à Era Vitoriana, no qual o ato sexual só não era visto como imoral se fosse para fins reprodutivos. E tudo relacionado a isso que fugisse da heteronormatividade focada para fins biológicos era um problema – ou, ainda, doença.
Estamos vivenciando uma forte onda de conservadorismo, a qual ganhou muito fôlego nos últimos anos. Isso reforça, justamente, essas questões – seja em seus discursos, seja por meio de políticas institucionais para este fim (tal como não promover a educação sexual e de sexualidade para jovens). Por isso, dentro deste contexto, pode parecer estranho propor que sexualidade é, também, um traço da cultura; pois bem, a verdade é que a última influencia consideravelmente a primeira.
Afinal, sexo, sexualidade e cultura podem andar lado a lado? A resposta é: sim.
E, se isso é um choque, não é sem razão: são muitos anos pensando que sexo e sexualidade estavam ligados estritamente a questões biológicas. E, pior ainda: associando sexualidade obrigatoriamente aos atos sexuais. Perceber o que poderia ser “óbvio” pode realmente nos tirar do lugar comum e nos fazer repensar, até mesmo, nossas próprias convicções sobre esses conceitos.
Se nem mesmo as concepções sobre sexo são idênticas, variando culturalmente, imagine quando falamos sobre vivências de sexualidade (incluindo aqui a assexualidade, ainda é vista em nossa cultura como distúrbio ou patologia).
Esses temas, bem como o erotismo, estão presentes não apenas nas áreas de medicina, psicologia e biologia; mas também nas artes, na cultura e na política. Eles, de fato, perpassam nossa vida em diversos aspectos.
Por isso, a ideia aqui será abordar a sexualidade enquanto traço cultural, com curiosidades, histórias, reflexões e proposições que nem sempre serão confortáveis. Porém, elas são necessárias para que possamos compreender como estamos inseridos nisso e como as questões não são tão “naturais” como pensamos. Quer entender a dimensão disso? Veja a seguir alguns pontos.
Não-monogamia
Exceto nas discussões suscitadas no ambiente acadêmico e pelos adeptos da não-monogamia, pouco falamos sobre a monogamia não ser algo “natural”, mas sim uma criação que surgiu há cerca de 20 mil anos. Nesse período, deixamos de ser uma espécie nômade e passamos a nos fixar em propriedades, ado a monogamia como estrutura de relacionamento prioritária – e que vigora até os dias atuais.
Poucas espécies são, de fato, monogâmicas (apenas 5% dos mamíferos). O argumento é de que os primatas (entre eles, nós, humanos) temos proles muito frágeis e que exigem cuidados por muitos anos; assim, seria importante que indivíduos mais velhos zelassem pelo desenvolvimento do filhote. Contudo, para este fim, a poligamia não consistiria em empecilho. Por que, então, migramos para a estrutura monogâmica?
Os elementos culturais, econômicos e políticos têm uma força muito grande aqui. Afinal, os seres humanos são a única espécie que, culturalmente, geram herança de propriedade – ou seja, os bens dos pais passam para as gerações seguintes. A monogamia, assim, permitia facilitar o processo sucessório da propriedade privada (e reforçou, também, o surgimento da sociedade patriarcal, já que a sucessão era feita em torno dos bens do elemento paterno da família). Com o tempo, isso foi sendo reforçado através da moralidade judaico-cristã e da legislação criada com foco na economia.
Ars Erotica e Sciencia Sexualis
Outro ponto que evidencia a intersecção entre sexualidade e cultura consiste das diferentes perspectivas que perpassam esses temas quando delimitada a separação Ocidente-Oriente. No Ocidente, sexualidade e sexo são fortemente associados – sendo, este último, composto por atos que envolvam genitálias (já que ele é, “naturalmente”, para fins reprodutivos). Por aqui, o conceito é encarado por um viés que dialoga com os conceitos de biologia e perpetuação da espécie (Sciencia Sexualis) – ou seja, como se o ato sexual fosse apenas para fins reprodutivos. Nesse contexto, o que foge desse objetivo final é “diferente”, “desviante”, “patológico” (vide o fato de que o fetichismo, a homossexualidade, a transsexualidade, entre tantos outros, estiveram presentes no CID-10 e DSM-4 por tantos anos). Sexo e sexualidade soam praticamente como sinônimos, limitando potencialidades libidinosas, além de excluir dessa área aqueles que não tenham desejo por sexo (tal como concebemos tradicionalmente), ou seja, a comunidade assexual (ace).
No Oriente, essa associação entre sexualidade e sexo já não é tão direta. Como Foucault aponta em sua obra “História da Sexualidade I: A Vontade do Saber”, nas culturas Orientais, predomina a noção de Ars Erótica (arte erótica), na qual compreende-se o sexo como uma forma de transcendência – muito mais ligada ao prazer, genuinamente falando, sem um interdito moral sobre o ato. Essa visão torna coerente encontrarmos, no Oriente, elementos como o Kama Sutra (que consiste em literatura religiosa hindu) e o Tantra (tradição do hinduísmo e do budismo, no qual as práticas sexuais possuem funções ritualísticas, como meio de transformação da divindade interior, colocando o sexo como um dos muitos aspectos da vida, indo além da procriação).
Esses foram dois exemplos simples para introduzir os temas que serão abordados aqui nas próximas edições. Precisamos encarar a sexualidade como um traço cultural – e, como uma influencia a outra, precisamos também enxergar as construções culturais sobre a sexualidade enquanto o que são, e não enquanto aspectos “naturais” da biologia humana.
Por muitas vezes, este é um caminho espinhoso; por outras, é libertador. O peso de não estar “adequado” ao “natural” imposto pela sociedade pode ser um sofrimento constante. E, por isso, estamos aqui para discutir e tentar desconstruir questões dolorosas para nós e para tantos outros. Vamos juntos nisso?