A corrida da vacina, especialmente para nós brasileiros, vem sendo acompanhada de polêmicas envolvendo o governo; entre elas, uma notícia: a possível abertura para a comercialização dos imunizantes por clínicas privadas. Essa última escancarou mais um confronto público, evidenciando as desigualdades econômicas e sociais do nosso país.
O que sabemos até agora é que, para funcionar, a vacinação precisa ser pensada no seu sentido geral, coletivo, porque só estaremos protegidos se as outras pessoas também estiverem. Não adianta vacinar só as pessoas que moram em uma casa, ou os funcionários de uma determinada empresa.
Desse modo, o setor público deve controlar a aquisição e a aplicação gratuita de imunizantes nos países, e nesse momento não há espaço para o setor privado comercializar as vacinas, porque as autorizações emitidas pelas agências reguladoras até agora são para uso emergencial. E como não há oferta suficiente, a prioridade é suprir a demanda do setor público.
A vacinação nacional é urgente, inclusive para frear o avanço das mutações do vírus Sars-Cov-2, mas por enquanto, toda vacina que for para o setor privado está tirando uma vacina do público. Isso porque não se trata ainda de um imunizante com ampla disponibilidade, as vacinas ainda estão sendo produzidas e dependem do envio de insumos, de um plano bem estruturado, de testes e relatórios de eficácia, de materiais necessários para aplicação, etc.
Mas além dessas questões, os especialistas vêm argumentando que, se a vacina for comprada pela rede privada antes de ser amplamente ofertada no SUS, estaríamos criando um problema político, gerando uma enorme desigualdade ao disponibilizar a vacina primeiro para quem tem recursos.
Vejamos pela lógica: os que puderem pagar vão pagar mais caro para tomar a melhor vacina. Mas quais os grupos correm os maiores riscos de contaminação? São os trabalhadores essenciais, moradores das favelas, famílias de classe baixa e baixíssima que dependem diariamente do trabalho no comércio, do uso de transportes públicos superlotados.
Ainda, pelo SUS existe uma ordem prioritária de saúde, como já sabemos, começando pelos profissionais do próprio sistema de saúde, pessoas idosas, e caminhando progressivamente para os outros grupos. No caso da comercialização ser autorizada, cada clínica privada vai organizar a oferta como quiser.
Os médicos apontam também outro problema: a maior parte das vacinas só tem a eficácia esperada com duas doses, e pode ser difícil conseguir a garantia de uma segunda dose no setor privado. Qualquer atraso em tomar a segunda dose ou diferença no tipo de vacina pode afetar o resultado, e o efeito no corpo não será aquele esperado em porcentagem de eficácia.
Os defensores da liberação da vacina argumentam que a venda das vacinas na rede particular poderia ajudar a desafogar o SUS, tirando do sistema os custos de vacinar essas pessoas que vão tirar do próprio bolso. Contudo, esse raciocínio não contribui para o combate à pandemia, porque apenas uma pequena parte da população tem acesso à rede privada.
Devemos deixar claro que essa coluna não se destina a criticar aqueles que torcem pela comercialização da vacina e aqueles que comprariam o imunizante caso pudesse. É óbvio que as ações de saúde exigem coordenação de Estado, e quando ele não age a sociedade acaba buscando formas de responder, ainda mais em um período totalmente novo que vem causando tanto sofrimento, tantas perdas e não temos uma previsão de melhora.
Nós temos um presidente que desacredita a vacinação como estratégia e um Ministério da Saúde que tem reduzido sua capacidade sanitária e capacidade de coordenação, o que contribui para uma pandemia mais alongada, com reflexos negativos não só na saúde, mas na educação, na economia, etc.
Mas ainda assim, pensar na rede privada como a solução ainda é um erro, e o problema não é propriamente a presença da vacina em clínicas privadas, mas sim a falta de ações coordenadas do governo associada à falta de uma vacina amplamente disponível.
A vacina não pode ser olhada como algo individual. Estamos falando de um bem comum e um bem coletivo, porque ela só funciona bem com esse sentido de coletividade. Uma vacina não vai se mostrar minimamente eficaz, principalmente as que estão sendo cogitadas no Brasil, quando existir certa porcentagem da população vacinada.
Muitos brasileiros lidaram com a pandemia sem o menor senso de coletividade e responsabilidade sanitária, participando de diversas aglomerações, incentivando o uso de medicamentos sem comprovação científica e desrespeitando o luto de mais de 200.000 famílias. Pressionar a venda das vacinas nesse momento seria mais um ato que comprova nosso individualismo e nossa irresponsabilidade cívica em – ao menos tentar – garantir que todos tenham um direito constitucional concretizado.
Referências
Denise Garrett: “Toda vacina contra covid-19 que for para o setor privado hoje será tirada do setor público”. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2021-01-08/denise-garrett-toda-vacina-que-for-para-o-setor-privado-sera-tirada-do-setor-publico.html>.
Vacinar primeiro quem pode pagar abre desafio ético e de saúde pública no Brasil. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55554353>.
Déborah Silva é advogada, especialista em Direito Constitucional e pós graduanda em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global.