Treze dias. Foram necessários apenas treze dias para que a crueldade extrema de um grupo de pessoas fizesse com que um rapaz jovem, preto, bissexual e periférico sucumbisse.
O ambiente de um reality show como o Big Brother, penso, consiste em um microcosmo construído de forma a potencializar os traços que já nos permeiam enquanto sociedade – as “tretas” que dão audiência nada mais são do que os tópicos em voga no momento, exacerbados e pessoalizados ao máximo.
Com um elenco muito mais diverso que os das edições anteriores, fomos inocentes em pensar que a dinâmica interna entre os participantes do programa fosse ser mais “justa”, na falta de palavra melhor. Enquanto tivemos a vitória de uma mulher branca racista em 2019, em 2021 temos um elenco composto em quase equilíbrio de brancos e pretos. Participantes assumidamente LGBT+ compunham o chamado “elenco mais gay” de toda a história do programa. Treze dias atrás, tudo isso parecia promessa de um ambiente mais consciente; porém, ao mesmo tempo que questões como o racismo, o machismo e a LGBTfobia substituíram as “tretas” de cunho narcisístico mais comuns nas edições anteriores, os níveis de crueldade e falta de empatia também chegaram ao seu máximo. O cancelamento e a lacração se tornaram regra em um ambiente de pessoas reais.
Pessoalmente, eu tentei me manter longe das notícias do reality; após uma semana do início da exibição, eu já me sentia saturada. Porém, os ocorridos mais recentes não me deixaram opção senão utilizar do meu espaço de fala – este texto, nesta revista – para tentar discutir o show de horrores que vem sendo exibido em rede nacional no horário nobre.
O Caso Lucas
O mote para a existência do presente texto tem nome e sobrenome: Lucas Penteado. Alguém muito diferente de mim; mas, também, muito parecido. Ainda que eu e ele não tivéssemos nada em comum, me indignaria a situação pela qual ele passou no programa; porém, os ataques aos nossos traços em comum (especialmente o da noite passada) tornam o meu silêncio pessoal impossível. Em nossas similaridades, tomo a liberdade de assumir protagonismo; em nossas diferenças, às quais não quero deixar de me endereçar, busco apoio na visão de amigas que as compartilhem com o rapaz (e com outras pessoas presentes no reality) para discorrer.
Lucas é um homem negro e periférico. Isso quer dizer que os quase 24 anos de existência que compartilhamos, em um mesmo território nacional, nos fazem muito pouco próximos. O fato de sermos ambos bissexuais, também, não nos aproxima tanto: homens bis passam por questões diferentes de mulheres bis, e não é como se fosse possível separar a orientação sexual de Lucas de seus outros traços identitários – sua negritude, sua origem periférica. A bifobia que Lucas sofre acaba por ser, em muitos casos, também racista e também classista, a depender de quem a profere; a análise interseccional, aqui, se faz essencial.
Bifobia
Na noite passada, em uma festa, Lucas beijou Gilberto. O primeiro beijo entre dois homens na história do reality; e, talvez, não sabemos, o primeiro beijo de Lucas com um outro homem.
Entender-se enquanto componente da comunidade LGBT+ não é um processo simples para ninguém; e para nós, bissexuais, é ainda menos simples. O principal motivo deve ter ficado bem claro para todes que assistiram à cena prévia à desistência de Lucas, ontem: nem mesmo a própria comunidade LGBT+ nos acolhe no momento de nossa descoberta. O rapaz ouviu de lábios lésbicos que sua expressão de sexualidade era “estratégia”.
Se fosse fora do reality, em vez de ser acusado de “estratégia”, Lucas provavelmente seria apontado como “indeciso”; mas, definitivamente, seria invalidado. Essa é a realidade de todos nós, bissexuais; e enquanto homem preto bissexual, oh Lucas, só lhe cabe o não-lugar.
Em uma outra questão, cabe também mencionar a intolerância com o momento de Lucas. Ora. Quantos de nós, LGBTs, já não tivemos terror das possibilidades, caso nos assumíssemos? Quantos de nós levamos anos e anos para conseguirmos nos compreender desviantes em um sistema de sociedade que impõe a heteronorma como possibilidade única? Qualquer idade é tempo de se descobrir; a sua bissexualidade ser assumida há mais ou menos tempo não interfere no quão válida ela é. Nem diminui a validade da expressão de outro, assumido há menos tempo – ou mesmo não assumido.
Violência psicológica
Enquanto a bifobia foi a gota d’água final, a violência psicológica já estava ali há bem mais tempo.
Tudo começou assim: Lucas ficou bêbado em uma festa, disse muitas coisas ruins, o que fez com que muita gente dentro da casa se sentisse ofendida. Agiu de forma baixa, ao acusar levianamente outra participante de racismo em situação percebida após como inadequada. Tentou manipular diversos outros participantes a fazerem o jogo dele de forma escancarada, o que irritou muita gente. [talvez o erro dele tenha sido a forma, já que a premissa base do Big Brother é a de que o vencedor é aquele que melhor manipula o clima na casa em favor próprio… mas isso não vem ao caso, agora.] Pois bem, as pessoas não começaram a desgostar dele de forma gratuita; porém, a partir de erros (nada inocentes, porém erros), instituiu-se um cenário no qual Lucas foi ostracizado. Ele foi impedido de falar; de se sentar à mesa para comer na presença de outras pessoas; de participar de etapas do programa comuns a todos os participantes. Ele foi verbalmente agredido, foi alvo de falas intolerantes ameaçado de agressão física e desrespeitado em sua existência. Ficam os questionamentos: Quantos de nós aguentariam esse tipo de situação, por mais culpa que carregássemos em nós? E, mais ainda: o que toda essa violência sendo veiculada enquanto entretenimento e sendo consumida ostensivamente diz sobre quem nós somos enquanto sociedade? Qual é o valor de uma vida frente aos lucros e ao engajamento? Quando foi que nós começamos a achar esse tipo de coisa aceitável?
A principal agente desse ostracismo foi, talvez, a cantora Karol Conká: mulher, preta e bissexual. Em uma situação clássica de ‘seu mestre mandou’, Conká conseguiu – ao contrário de Lucas – fazer com que a maioria dos outros participantes ficassem ao seu lado, apoiando (ou, minimamente, não questionando) seu comportamento abusivo em relação a Lucas. Bem, é decepcionante, para dizer o mínimo, ver que alguém com vivências de opressão tão intensas, com conhecimento de causa sobre a dor de ser oprimida, é capaz de oprimir outra pessoa ao extremo a ponto de chegar a uma situação criminosa; pois, sim, as injúrias que Karol direcionou a Lucas são crimes, sendo transmitidos ao vivo no horário nobre em rede nacional. E frente à permanência da exibição, à falta de ação dos produtores do programa em relação a impedir essas situações, eu me pergunto: onde é que vamos chegar, com tudo isso?
E me faço essa pergunta novamente, ao pensar em um outro aspecto de tudo isso: se Conká fosse branca… será que a vida dela fora do programa estaria sofrendo as consequências de suas ações no reality da mesma forma?
Racismo
Bem, o histórico do Big Brother contribui e muito para me fazer acreditar que não. Se Conká fosse branca, muitos de seus contratos cancelados ainda estariam vigorando. Se Lumena fosse branca, suas palavras duras e acusações injustas seriam relevadas com muito mais facilidade. Nenhum de seus erros as perseguiria para além do tempo do programa.
Muitos dos que me leem e que estão indignados com as situações pelas quais Lucas passou irão pensar que Conká, Lumena e aquelas que as apoiaram não são dignas de defesa. E eu concordo; nenhuma agressão ou injustiça se justifica, independente do gênero, da cor, da orientação sexual. Mas penso que cabe a nós, público, percebermos os pesos e medidas diferentes que utilizamos para tratar violências equivalentes, quando cometidas por pessoas pretas ou por pessoas brancas. Em especial se você, como eu, também é branco; porque é bem fácil se justificar nas más ações de pessoas pretas para expressar o racismo que mora em nós, aquele que já não recebe mais esse nome, mas que ainda pesa no julgamento. Se a ideia é não passar pano, é pra não passar pano pra ninguém; inclusive pra nós mesmas, que estamos aqui de fora, cheias de certezas.
Outras questões importantes
O show de horrores que está sendo o Big Brother Brasil 2021 não se resume às questões apontadas até agora, claro. Temos as questões de classe, de território, de educação formal – muito bem representadas por Conká (que já direcionou falas problemáticas sobre os trejeitos nordestinos de Juliette, em sendo sulista) e Lumena (que está sempre lá dando carteiradas de que sabe mais que os outros), mas que se estendem a outros participantes como Nego Di, que não perde uma oportunidade de ser ofensivo e já conta com um histórico extenso de falas xenófobas, coloristas e desmoralizadoras.
Todas essas questões precisam ser pensadas e questionadas com urgência. Se o escancaramento de tudo isso em rede nacional serve de algo, é para que a gente tome consciência da sociedade que somos, que estamos construindo através de cada fala e ação individuais. Se estamos todas, todos e todes embasbacadas com o que está acontecendo na TV, é sinal de que não estamos percebendo isso acontecer na vida real – e acontece, o tempo todo. Mantenho a percepção que apresentei nas minhas considerações iniciais: o Big Brother consiste em um microcosmo construído de forma a potencializar os traços que já nos permeiam enquanto sociedade; e cabe a cada um de nós transformar esses traços.
Pessoalmente, eu prezo para que esse Big Brother sirva de lição a cada um de nós enquanto sujeito social. Cabe a nós, cada um, que o sofrimento público de um jovem preto bissexual periférico em rede nacional não seja em vão.
Meus agradecimentos pessoais às mulheres incríveis que me ajudaram, com suas opiniões e informações, na escrita desse texto: Lorraine Mendes, Lauana Coutinho, Luciana Rodrigues. E à Danielle Rocha, que para além disso, me lembrou da minha obrigação enquanto jornalista e editora em tratar dos acontecidos recentes, ainda que eu estivesse fugindo do Big Brother com o máximo das minhas forças.
Carol Cadinelli é jornalista, apaixonada por palavras. Escreve, edita, revisa, traduz e, vez ou outra, fotografa. Atualmente, é editora, colunista e repórter na Trama.