“Deus Vult”
Essa é a máxima que dá início às cruzadas, à ideia da reconquista e da hegemonia da fé cristã dentro da “terra santa”. Em si, “Deus Vult” nasce de um concílio e da necessidade de monopolizar relações comerciais e fortalecer os reinos vassalos do Papa, carregando o significado: Deus Quer. Mas quer o quê?! Analisemos.
O contexto é de soberania, de uma tentativa de limpeza dos territórios através da eliminação daqueles que não professam a mesma fé. É sob esse mote que Urbano segundo convoca a primeira cruzada em 1095 no sínodo de Clermont: visando “purificar” a península ibérica de todo mulçumano que ali residisse; afinal, a marca da reconquista era um grande rombo nos cofres das principais nações cristãs de fronteira com os vizinhos mulçumanos. Para além disso, já havia, de fato, as peregrinações por parte das realezas e dos nobres dos reinos em legitimar força, que buscavam garantir o seu reinado e seu direito divino de governar o outro através das peregrinações à Terra Santa.
Era preciso garantir a segurança dos herdeiros, que ‘Deus escolheu’, que ‘Deus quis’, nessas travessias. Era preciso uma intervenção militar!
No imaginário cristão, existe o êxodo, o retorno a uma terra prometida, um direito, uma coisa que vai garantir estabilidade, prosperidade, vida abundante – ao menos deveria ser; porém, o contrário costuma ser regra: a terra prometida parece cobrar um largo valor em sangue e vidas humanas.
Após a reforma protestante e as crises e cismas entre a igreja católica, a igreja anglicana e os revoltosos reformados, os puritanos se veem na necessidade de fugir das perseguições. Nesse contexto, as 13 colônias são fundadas, na esperança de um novo éden, uma terra prometida, assim como nas histórias bíblicas. É claro que, nessa “terra prometida”, já existiam pessoas estabelecidas; mas o direito delas à terra pouco importaria, uma vez que jamais haviam conhecido o tal Jesus de Oxford, Roma, Madrid e por aí vai.
Após a penosa e custosa guerra da independência, a jovem nação “estadunidense” se vê no desafio expansionista de se garantir como nação relevante – afinal, o que os uniu como nação vitoriosa foi a predestinação, a crença de que a terra era dos “Novos Nativos Americanos”, essa doutrina calvinista de que “deus escolhe seus eleitos”. Essa linha de raciocínio pavimentou, no coração dos norte-americanos, a noção de que eram heróis, de que suas ideias era similares à democracia grega e aos ideais da revolução francesa – o que culmina na construção de uma nação do “povo”, pelo “povo” e para o “povo”. Ora, o cheque em branco para custear massacres, assassinatos, golpes, invasões em defesa da democracia estava assinado naquele instante.
A expansão vem, para além da compra do atual estado da Louisiana e cercanias. O olhar cresce para os portos do pacífico; as rotas comerciais que facilitariam a expansão da economia norte-americana estavam bem na frente do poderoso e “libertador” exército estadunidense. A partir daí, o “império” estava formado; outras regiões foram conquistadas, compradas e “apoiadas” na construção da democracia. Inclusive, a mudança na rota comercial global se deve em parte aos nossos “defensores da democracia”, quando construíram o canal do Panamá.
“Deus abençoe a América e a mais ninguém.”
A frase acima é a máxima de um candidato à presidência em um filme do Chris Rock chamado “Um Pobretão na Casa branca” (recomendo), onde o personagem de Chris é usado como candidato de um partido para atrair as minorias. No filme, isso dá muito certo, e o candidato que usa a frase para legitimar seu patriotismo perde a eleição.
O interessante é que, na campanha de Chris, ele muda a frase para: “Deus abençoe a América e o país A ou B, também”. Uma bela jogada para criticar, sim, esse discurso proferido ainda hoje nas eleições Estadunidenses. Mas, se temos filmes que criticam esse imperialismo norte americano, temos muitos mais que o defendem, vendendo o sonho de uma nação justa, de oportunidades, com sonhos brotando em cada esquina e conquistando as alturas do sucesso.
A indústria cinematográfica estadunidense aprendeu no melhor campo: a guerra. Prova disso é o documentário Five Came Back, que aborda o esforço da propaganda de guerra para angariar fundos monetários e pessoais para o esforço de guerra contra o fascismo na Europa.
Filmes como Rambo, Braddock, entre outros, venderam esse sonho intervencionista e patriótico, assim como muitos outros nas décadas anteriores. Em todos deles, um elemento em comum: as nações que atacam os “pacíficos” estadunidenses nunca professam a mesma fé cristã – ou seja, persiste, até hoje, uma ideia romântica de cruzada, um bastião da fé, da moral e dos bons costumes. E entre filmes que formaram a mentalidade das gerações anteriores e da nossa, essa noção permanece em nosso imaginário. E, longe de ser algo inofensivo, a persistência dessas noções dá espaço para a ascensão do Cristofascismo Brasileiro.
O Cristofascismo Brasileiro
A idéia de uma cruzada espiritual, política, moral é algo espantoso. O Papa Francisco, assim como João Paulo II anteriormente, sempre procura pedir perdão pelas Cruzadas, enxergando o erro, admitindo a culpa; porém, em 2014, o discurso me chamou a atenção. Nele, o Papa Francisco disse que “A igreja não precisa de cruzados, mas de semeadores da verdade” – algo que bate muito de frente com o que temos como evangelicalismo brasileiro.
Os defensores da “verdade absoluta” lutam e defendem uma fé que não está sob ataque nem nunca esteve. Afinal, é possível atacar algo que não se toca, não se vê?
Os defensores da fé acreditam numa nação evangélica, numa nação abençoada por Deus, uma nação vitoriosa e próspera, uma nação favorecida, uma nação referência, desejada e, por isso, uma nação que precisa de força para se defender, mas principalmente atacar – afinal, o ataque pode prever a necessidade de se defender.
O imaginário evangélico brasileiro está saturado de destino manifesto. Filmes evangélicos têm ganhado força, com casas repletas de patriotismo estadunidense, fé, alegria e amor de uma família de propaganda de margarina.
O curioso é que a margarina é um produto tão nocivo, tão artificial, que um pote aberto não é consumido nem por insetos. Um subproduto de um produto original que, em si, já não é tão benéfico assim. O evangelicalismo brasileiro, em comparação, é a margarina do cristianismo: o subproduto de um outro produto que, em si, já possui procedência duvidosa.
Na construção da base teológica que pavimenta essa ascensão fascista nas igrejas brasileiras, a Europa é vista como pós-cristã. Usam-se dados sobre população, religião, maioria étnica, e tudo isso aponta para uma Europa muçulmana (olha a cruzada aí de novo!). Os norte-americanos, assim, são a resistência, os defensores da DEMOcracia – um pensamento perigoso, que nos faz jogar na caixa da heresia teólogos, pastores e intelectuais da religião os quais têm buscado promover diálogos essenciais para a resolução das políticas xenofóbicas e racistas que têm sido disseminadas na Europa e no resto do mundo.
Para além disso, a ascensão da nova cruzada se dá por suporte de um movimento religioso estadunidense chamado The Send – O Envio (evento ocorrido em 2020), que vem na ideia de uma cristianização, de uma luta pela democracia, pelo direito de liberdade religiosa (só para eles), onde a base é de que a nação brasileira tem promessas, de que existem um destino para o nosso país, um evento que legitimou o futuro fascista da tradicional família brasileira nos jovens que comparecem ao evento cheio de shows em três estádios.
O evento foi um “marco” na vida dessa juventude que está aí, em ascensão nos postos de trabalho, nas novas igrejas, nas caminhadas políticas, nos domínios nas redes sociais. Um universo inteiro surgiu disso, tal como da indústria cinematográfica norte-americana. Pois bem: a construção da hegemonia cristofascista está apenas no começo.
É claro: existem também outras bases (os jejuns nacionais e a constante visita dos tais teleevangelistas representando suas mega igrejas, por exemplo) que sustentam essa construção sólida que é a muralha da religiosidade moral que protege a presidência e injeta dinheiro nesse projeto de domínio religioso. Mas, sobre isso, conversaremos em um próximo texto.
Kariston França é amante de pizza. Palestrante desmotivacional, ex teólogo, professor, músico que já integrou um famoso grupo de pagode 90. Tenta seguir a vida escrevendo na Trama em mais seis projetos paralelos.