Meu corpo também guarda o gesto contrário
Francisco Mallman
Richard Sennett nos conta uma história em que ele e um amigo assistiam a um filme num cinema de Nova York. Esse amigo era um ex-soldado que tivera a mão esquerda amputada por ocasião da Guerra do Vietnã e usava uma prótese mecânica, com dedos de metal, que lhe permitia segurar alguns objetos e digitar. Durante o filme – um sangrento épico de guerra –, o amigo permaneceu impassível, emitindo somente alguns comentários técnicos. Ele relata:
“À saída, fumando, aguardávamos outra pessoa que viria ao nosso encontro. Ele acendeu seu cigarro sem pressa, segurando-o com sua garra […] O público acabara de enfrentar duas horas vendo corpos dilacerados, aplaudindo com o maior entusiasmo os lances mais violentos e a carnificina. Passando por nós, as pessoas observavam inquietas a prótese de metal e se afastavam rapidamente. Logo, éramos uma ilha no meio delas”¹.
Esse tipo de caso parece ilustrar muito bem o que o próprio Sennett chamou de “passividade do corpo”, em sua busca por apontar uma tendência de experimentação anestesiante do (ausente) contato entre os corpos na cidade, onde os meios de comunicação e a geografia urbana servem para falsear a violência e insensibilizar o público ante à dor real. Daí que as pessoas, observando aquele corpo ativo, marcado por circunstâncias reais, se sentiram mais incomodadas que em duas horas assistindo a cenas cruéis de guerra.
Mas, e se esse pequeno caso nos revela não somente um empobrecimento da experiência sensível do corpo devido à ordem dispersiva e tecnológica de nossos contatos? E se evidencia traços de uma política social de afetos cujas individualidades dependem do aspecto desencarnado e irreal de seus dramas para continuar “funcionando”?
Uma teoria psicanalítica dos afetos poderia nos ajudar numa primeira reação a essa questão. Não é que simplesmente existem pessoas mais afetáveis e outras menos afetáveis à dor e ao sofrimento; a questão é que não existe um corpo político-social que não produza seu circuito de afetos². Cada corpo, com seu sistema de referências, é afetado de uma forma. O modo como sentimos o mundo a nossa volta passa por esse sistema. É o que leva Safatle (2019) a dizer que uma política liberal, que compreende o indivíduo como fundamento para relações de reconhecimento, só pode ter como afeto político central o medo. É o medo que, de certa forma, favorece o não-contato, já que o outro é sempre visto como “invasor” potencial e concorrente econômico. Aqui, a garra metálica do homem fumando é mais do que uma condição física – é uma ameaça ao meu senso pessoal.
O desdobramento dessa questão nos leva a uma segunda reação: para que nosso corpo seja afetado de outra forma pelos objetos que nos tocam, é fundamental saber se aquele outro, externo a mim, é realmente reconhecido [por nós] como alguém; se a condição daquele corpo passa pela inteligibilidade do regime de reconhecimento em que estou inserido. Não podemos deixar de lembrar que as lutas por reconhecimento são fontes contínuas de sofrimento social para aqueles que não são inscritos em tal gramática de legibilidade. É o que Frantz Fanon exprime quando diz: “peço que me considerem a partir do meu Desejo. Eu não estou apenas aqui-agora, encerrado na coisidade […] luto pelo nascimento de um mundo humano, isto é, um mundo de reconhecimentos recíprocos”³. A arte de reconfigurar nossas normas de reconhecimento nos coloca em direção ao outro-corpo e seus modos de sofrimento, até então calados e marginalizados.
Por fim, podemos concluir dizendo que não se alcança o gesto contrário de uma presença corpórea transformadora sem uma encarnação radical. Uma terceira reação em favor da destituição de uma determinada política de afetos consiste em reiterar-se daquilo que Lacan chamou de corpo vivo, aquele corpo afetado mais-além das palavras, afetado pelo gozo. Convém aceitar o convite a uma experimentação na carne, o empirismo que nos torna descentrados e abertos a reciprocidade. A in-corporação, o sentir dentro, é coisa que só pode ser feita assim, desde um reconhecimento postulado pela carne:
Ó meu corpo, faz sempre de mim um homem que questiona
– Frantz Fanon
REFERÊNCIAS
¹SENNETT, R. Carne e Pedra (2008).
² SAFATLE, V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo (2019).
³ FANON, F. Pele negra, máscaras brancas (2020).
Micael Correia tem 22 anos e é um escritor não-autorizado. Faz graduação em Psicologia e nutre interesse por Psicanálise, Cultura e Religião.