DA SUPREMACIA DAS COISAS VIVAS

 Honestamente, fiquei constrangido quando a professora disse que você
       não estava vivo/a
 Tão brutalmente inadequado 
 Quão desesperançosamente inerte você parecia
 Justaposto contra a célula com todas iniciativas vigorosas dela
  
 e você sem nada além de um casaquinho de lipídios no seu nome
 e você mantendo vigília no vazio
 e você escondendo um estilete como um covarde
 e você pensando ideias transparentes
  
 e não é só seu jeito de se meter onde você não é bem-vindo?
  
         “você não vai chegar tão longe assim na vida”
         minha mãe falava.
  
 Honestamente, fiquei irado com a professora quando ela disse isso
 Tão fácil ela partiu o mundo em reinos, ordem, filos
 Quão fácil ela escrevia você para fora do círculo
 No monte de poeira
 Com os príons 
 E outros pedaços mal resolvidos de vida
  
 e eu só com um amigo em meu nome
 e eu mantendo vigília no pátio da escola
 e eu escondendo minha paixão como um covarde
 e eu pensando ideias transparentes
  
 e não era só meu jeito de ficar na beira do círculo
 e rir com quem ria mesmo que me ferisse?
  
         “você não vai chegar tão longe assim na vida”
         minha mãe falava.
  
 Honestamente, aos quinze, o que eu sabia da fronteira onde vida
       verte numa outra coisa?
 Mas eu pude ver os pensamentos do fundo de seu coração
        codificados numa cadeia de ácidos:
        os segredos que você quis contar às minhas células
  
 Não achava que algo tão determinado poderia estar morto
 —A professora esclareceu que você estava no limiar da vida.
  
                                                 *    *    *    
  
 E agora, não tem uma única parte de mim 
        que não sabe seu nome
 Para algo quase morto, você tem feito isso bem demais
  
 Mas é o que você queria?
 Você e seus clones irrompendo
        rasgando pelas paredes de seus containers?
 Ou você estava
 Como eu
 Só tentando se expressar?

 
 [Por Taonga Leslie]
  
 [Tradução-afetação de Tálisson Melo / Título do original: On the Supremacy of Living Things. Do livro A New Road. Cê pode ler o original em Inglês logo abaixo] 

Desta vez, tomo meu cantinho mensal nessa Trama para divulgar um filhote: A New Road, um livro recém lançado em Nova York (16/04/21), com poemas de Taonga Leslie e ilustrações minhas (também diagramei e criei a capa que o embala). Como o objeto-livro se encontra a venda somente nos EUA e em dólares – oh my f#ck%ng go$h! –, dificultando muito sua chegada por nossas bandas, dediquei um tempo a traduzir um dos meus poemas favoritos e compartilho aqui algumas das páginas ilustradas. Também trago um vídeo que fizemos com a voz do Taonga lendo outro poema muito forte dessa série, intitulado boat poem.

Desde setembro de 2020 (sim, em plena pandemia!), venho trabalhando nessa parceria criativa-afetiva com Taonga Leslie (@ongasnista) para trazer ao mundo o livro A New Road (@newroadpoems). Ele é estadunidense, da Flórida, e mora no Brooklyn; atua como advogado, mas o que aguça mesmo seus sentidos é a poesia e a música. A gente se conheceu quando morávamos em New Haven, meados de 2018, e desde lá trocamos muitas ideias em forma de desenhos, comida, dancinhas, áudios longuíssimos de WhatsApp e algumas viagens mais para o norte e mais para o sul – dos ventos cortantes de Boston, chegamos a desbravar juntos alguns caminhos entre as ondas de asfalto de Bogotá e aquelas de água e sal que quebram entre las Islas del Rosario do Caribe.

Sem nenhuma solenidade, tudo foi se tornando criação com palavras e imagens. Com Taonga se mudando para Nova York a dar início a sua atuação na advocacia, e eu voltando ao Rio de Janeiro para terminar o doutorado, esses processos criativo-afetivos se expandiram – como mercúrio fora do termômetro –, foram se dividindo e voltando a se juntar a cada passo, como tudo o mais que tem a ver com o amor. Para reforçar a liga, decidimos juntar os últimos poemas dele numa série para chapbook; enquanto isso, eu ia lendo cada um e arriscando traduções gestuais-visuais com tinta no papel, cores e texturas. Isso acabou virando um livro nosso, com poemas dele e ilustrações minhas.

O poema do Taonga que apresento aqui em português, On the Supremacy of Living Things, foi vencedor do prêmio Brooklyn Poets em abril de 2020, e foi o que deu início à nossa empolgação por encaminhar o livro. A versão em português é uma tradução afetada minha a partir das palavras dele, que admito soarem mais cortantes no inglês dele de vogais e consoantes dentadas do que no meu português um tanto melancólico de nasais e remendos vocálicos:

On the Supremacy of Living Things
  
 Honestly, I was embarrassed for you when Teacher said you 
        weren’t alive
 How brutally inadequate 
 How hopelessly inert you seemed 
 Juxtaposed against the cell with all her lusty enterprises 
  
 and you with nothing but a thin coat of lipids to your name
 and you keeping vigil in the void
 and you hiding your dagger like a coward 
 and you thinking transparent thoughts
  
 and isn’t it just like you to insert yourself where you’re unwelcome?
  
        “you won’t get very far like that in life”
        my mother said.
  
 Honestly, I was angry at Teacher when she said it
 How easily she sliced the world up into kingdoms, orders, phyla
 How easily she wrote you outside the circle
 In the dust pile 
 With the prions 
 And other misfolded bits of life
  
 and me with only one friend to my name
 and me standing vigil in the schoolyard
 and me hiding my passion like a coward
 and me thinking transparent thoughts
  
  
 and wasn’t it just like me to stand at the circle’s edge 
 and laugh with the laughers even though I was in pain?
  
        “you won’t get very far in life like that” 
        my mother said.
  
 Honestly, at fifteen, what did I know of the frontier where life
         verges into something else?
 But I could see your heartmost thoughts 
         encoded in a chain of acids:
         the secrets you wanted to tell my cells
  
 I didn’t think that something so determined could be dead
 —Teacher clarified that you were on the brink of living.
  
                                               *   *    *    
  
 And now, there’s not a single part of me 
       that doesn’t know your name
 For something almost dead, you’ve done quite well
  
 But is this what you wanted?
 You and your clones bursting forth and
        tearing through the walls of your containers?
 Or were you
 Like me
 Just trying to express yourself?

[by Taonga Leslie]

Tálisson Melo é Artista-pesquisador. Doutorando em Sociologia e Antropologia na UFRJ. Publicou o livro “Mesmo Sol Outro” com Carolina Cerqueira (2018). Atualmente trabalha em projetos curatoriais-editoriais e de pesquisa em Montevidéu, Juiz de Fora e Nova York – emaranhando artes visuais, poesia, design, arquitetura, cinema, história e ciências sociais. @talisson.melo @mesmosoloutro


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *