“Chegou a hora de falar
Vamos ser francos
Pois quando um preto fala
O branco cala ou deixa a sala
Com veludo nos tamancos
Cabelo veio da África
Junto com meus santos
Benguelas, zulus, gêges
Rebolos, bundos, bantos
Batuques, toques, mandingas
Danças, tranças, cantos
Respeitem meus cabelos, brancos”
(Chico César)
Mais uma vez, o cabelo crespo entrou em pauta na sociedade brasileira, estrutural e historicamente racista; desta vez, para se debater se a violência que atinge pessoas negras que utilizam o seu cabelo natural é ou não é racismo. Mais uma vez, pessoas que não têm cabelo crespo ou qualquer outro traço fenotípico de pessoas negras achando que sua opinião tem o poder de validar ou não a violência racista apontada por uma pessoa negra.
Para contextualização daqueles e daquelas que não estão por dentro dos recente ocorridos, um participante do Big Brother Brasil, João Luiz, apontou que a comparação feita pelo participante Rodolffo, da peruca de um homem das cavernas com o um black power, seria inapropriada, racista, violenta. Comentários racistas com relação ao cabelo e a outros fenótipos de pessoas negras são recorrentes no programa exibido pela Rede Globo de televisão, que atualmente atinge audiência de aproximadamente 60 milhões de pessoas. Por exemplo, os comentários com relação ao tipo de pente utilizado pelo participante Babu Santana na edição de 20 do programa; ou a reação do participante Ronan com relação à uma esponja de lavar louça que era no formato de um cabelo black power na edição 16 do programa.
E seu livro “Memórias da plantação” (2019), a psicóioga Grada Kiloma escreve que “[…] quando o sujeito negro denuncia o racismo, o sujeito branco, como uma criança, regride a um comportamento imaturo, tornando-se novamente a personagem central que precisa de atenção, enquanto o sujeito negro é colocado como secundário. A dinâmica entre ambos é virada de cabeça pra baixo. Na psicanálise clássica isso é chamado de regressão” (KILOMBA, 2019, p. 123). Ou seja, ainda que seja apontado a atitude racista, o sujeito branco, por incapacidade ou por mau-caratismo, não consegue minimamente pedir desculpas e incorporar aquele acontecido enquanto um aprendizado. Ele precisa se desculpar e justificar. Exatamente como vimos acontecer no programa da Rede Globo.
Mas nós realmente vamos falar de BBB? Qual a relevância do programa?
Além de entrar absolutamente todos os dias nos assuntos mais comentados do Twitter apontando que grande parcela dos internautas ainda assistem e comentam sobre o programa nas redes sociais, estes acontecimentos refletem a sociedade brasileira: racista, elitista e branca.
Recentemente, a cantora Ludmilla perdeu uma ação movida na justiça contra a socialite Val Machiori; o motivo da ação foi um comentário da branca sobre o desfile do carnaval do ano de 2016, onde Ludmilla desfilou para uma das agremiações do Rio de Janeiro, e Val disse que o cabelo da cantora “parecia bombril”. A peruca utilizada por Ludmilla se aproximava da textura de um cabelo crespo 4C. A justificativa era que a socialite tinha o direito à liberdade de expressão. E a imagem de mais de 50% da população sendo ridicularizada em transmissão nacional, isso não deve ser levado em conta?
Na semana que escrevo este relato, uma menina chamada Nicole Cristina, que é karateca e compartilha sua rotina na rede social Tik Tok, publicou um vídeo com toda sua inocência respondendo a comentários sobre seu cabelo. Crespo com textura 4C. A menina compartilha sua rotina de esporte e cotidiana e, ainda assim, o cabelo foi incômodo para as pessoas que assistiam a seus vídeos.
Por que a branquitude acha que o cabelo crespo é algo diferente das outras texturas? Por que a branquitude acha que o cabelo crespo é algo público, que pode receber comentários, toques e opiniões? Quem deu a vocês este direito de tornar a nossa imagem e subjetividade um elemento de opinião pública?
Retornando a Grada Kilomba: ao relatar a entrevista com uma de suas sujeitas de pesquisas, ela aponta que, na relação com o cabelo, “a diferença é usada como marca para a invasão […] Apesar dos comentários ambíguos – que parecem positivos – a relação de poder entre aquelas/es que a tocam e Alicia, que está sendo tocada, ainda assim permanece, bem como o papel depreciativo de tornar-se um objeto público” (p. 121-122). Nossos corpos não são objetos públicos. Nós não pedimos comentários ou opiniões de vocês. Nós não devemos explicar a importância do cabelo crespo natural, ou a relação com nossa ancestralidade, com nossa auto-estima, porque este é uma temática que diz respeito estritamente a nós. Estudar é um dever de vocês. Que pesquisem. Google existe pra isso. Mas vocês têm que respeitar a nossa escolha de utilizar o nosso cabelo natural, assim como vocês utilizam o de vocês. E quando alguém fizer um apontamento que o seu comentário foi racista, cabe a você interiorizar, aprender e não repetir com outras pessoas. Vocês têm que sair da posição de infantilidade e mau-caratismo.
REFERÊNCIAS
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução: Jess Oliveira. 1. Ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
Luan Pedretti é mestrando em Educação pelo PPGE/UFJF, professor de História, integrante do Movimento Negro em Juiz de Fora pelo Coletivo Negro Resistência Viva.