CASA VIVA

Naquela casa, as louças não escorriam na pia depois de limpas. A máquina de lavar desconhecia a função do molho. O bule nunca alcançava o chiado. A poeira não conseguia descansar nos móveis e os sapatos rasgavam o chão. As plantas estavam morrendo afogadas e o vento fazia cantar as portas. O almoço nem mesmo chegava a cheirar. Vivia-se com um dos pés no amanhã. Numa quarta a tarde, entre as correrias vazias da rotina da casa 50, ouviu-se o cochichar da água. Ping. Ping. Ping. Não era uma torneira porcamente fechada — jamais poderia ser. Os chuveiros adormeciam desde a noite anterior. Eletrodomésticos foram desligados, móveis arrastados, registros checados. Nada.

Na manhã seguinte, o despertador era diferente do usual: milhares de ping por minuto. A água se espremia pela lateral de uma das lâmpadas do corredor e empoçava ali, logo ali. No meio da passagem! Deixaram o balde, durante todo aquele dia, aportando o gotejar. Pela noite, estava cheio. Precisaremos abrir — parece realmente sério.

Vocês estão vivendo debaixo de uma nascente! Diagnosticou o encanador. O telhado tinha desistido das chuvas e os céus se acumulavam entre a laje e o gesso. Começariam a obra em alguns dias. O quanto antes acabassem, melhor seria para a normalidade. Até o fim do mês, aprenderam a desviar das bacias e baldes que, cada vez mais, ocupavam o chão da casa. Ao lado da TV, em cima da pia do banheiro, na mesa do escritório, ao lado da estante. O mofo coloria a casa e sugava lentamente a fúria apressada da rotina. Quando o bule começara a chiar nas manhãs, iniciaram a obra.

Tire suas férias para me cuidar, diziam as paredes e os telhados. Assim foi feito, ainda que preferissem fazem algum curso imersivo com aqueles dias conquistados a custo alto de suor. Dos pequenos rombos no teto, o céu espiava aquelas cabeças inflamadas correndo de lá pra cá. A laje pingava cada vez mais e decodificava o quão longo seria o processo: no mínimo, dois meses e uns dias. Pedreiros e engenheiros e ajudantes entravam, espiavam, desenhavam e marretavam. Enquanto se distraíam, o chão da cozinha inflou e estourou sem cerimônias. Por Deus, MAIS ESTA? Se irritaram em maiúsculas. E depois desta, vieram os istos e esses e aqueles e aquilo lá também. Só não despencou a casa porque ancorava na encosta do morro.

Não se sabe quanto tempo foi preciso para finalizar tudo. Definitivamente, mais do que o previsto. O teto parou de chorar primeiro. Despediram-se daquela aguaceira com vinhos em taças envelhecidas pelo armário. Depois, trocaram os pisos. Novos tetos, novos chãos. A cozinha, já enquadrada como culpada pela impaciência dos vizinhos, ficou nua. Vestiram-na com uma geladeira nova, frostfree, e uma mesa com pés que sabiam dançar. Se eu fosse vocês, aproveitava e dava um afeto para essas paredes, disse a entregadora da loja de eletrodomésticos. Escolheram coral, amarelo, terracota. Pintaram eles mesmos no final de semana deixando a papelada do trabalho esperar até segunda. Quando a obra se despediu, o sofá passou a esquentar. A TV voltou a ver filmes e o cheiro de canela assentava o cômodo. As paredes, agora com olhos bem abertos, espiavam tudo. Despretensiosamente, as plantas passaram a receber a dose certa de atenção e brotaram folhas em agradecimento. Desafogaram os tetos, os pisos, as terras. Casa e vida agora podiam respirar mesmo em dias chuvosos.


Fernanda Zeloschi é estudante de Psicologia e, quando ninguém está olhando, escreve e compartilha seus questionamentos e descobertas na página @fazerafetar.


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