A morte é tão amorosa!
– Kierkegaard
Não raras vezes, tomado pelo desconforto em ocultar os efeitos subjetivos do estado degradado do nosso contexto, recuso a conformação “tudo bem” nas variações cotidianas de nossos cumprimentos casuais. Substituir tal expressão por uma outra, que não coubesse nem inteiramente o “tudo” nem inteiramente o “bem” é a reflexão que sucede cada encontro em que esse jogo comunicativo se apresenta. Esse tipo de reflexão – que parece mais adequado a gêneros literários que permitam certas coloquialidades – soa, à primeira vista, pouco pertinente para um ensaio como esse. E, de qualquer forma, não estaria necessariamente errado esse juízo. Mas me ocorreu perguntar se, numa escala mais apropriada, esse pensamento não comporta um modelo de questão para um problema mais abrangente de nossa vida social atual: como inserir um estado subjetivo tão marcado pelas milhares de mortes decorrentes da pandemia numa linguagem historicamente refratária ao reconhecimento de certas condições humanitárias?
Devemos começar dizendo que responder a essa questão não se trata de recorrer a uma adequação ao politicamente correto da linguagem; também não cabe aos princípios da comunicação não-violenta tal resposta, e pretendo deixar claro que é justamente de um ponto de vista contrário que o problema levantado pode ser melhor avaliado. Retomando a questão, se trata de fazer um movimento um tanto quanto ambicioso: o de inserir o que há de mais violento, real e indizível nos meandros do discurso, sem fazer dele uma casca, um slogan ou uma propaganda perversa. Seria como perguntar: como dizer a(s) morte(s)?
A justificativa parece óbvia. Afinal, o que aparece enquanto mais urgente para nossa sociedade parece ser confrontar a indiferença à morte, pois mesmo quando essa não cessa de devastar a tudo e todos, falamos como quem busca normalizar a realidade – seja pela ausência de repertório apropriado para desautomatizar a cadeia significante, seja pela obtenção de um mais-de-gozar através da política suicidária. Porém, cabe lembrar que a economia simbólica de nosso país, por assim dizer, se apresenta já desde sua formação enquanto um esforço de esquecimento. Esquecer, passar por cima, desconversar, é, para nós, a semântica violenta de nossos processos históricos, desde que com ele seja notado certo horizonte de desenvolvimento. Esta é a retórica colonialista do genocídio indígena, por exemplo.
E, como nos lembra Kierkegaard, é justamente através da atitude em relação aos mortos que entendemos a substância ética de nossas vidas. Isso significa dizer que o modo como falamos de quem se foi diz respeito mais profundamente às coisas do amor do que a quaisquer outras, como se o amor aos vivos e o amor aos mortos tivessem, em sua matriz, um núcleo afetivo comum, como dois polos indissociáveis. Aplicados à política, podemos dizer que tanto a política em relação aos vivos quanto aquela em relação aos mortos estão ligadas por um elo unificante, nos permitindo visualizar a mesma face sob duas perspectivas contrárias.
Pensando assim, parece inevitável o diagnóstico daquilo que nos governa: “morrer é ser esquecido; e para ser esquecido, basta estar vivo”. Diante disso, talvez seja o caso de produzirmos uma linguagem que garanta um contrapoder político baseado na subversão dessa regra, um “falar sobre os mortos”. Mas trata-se, antes, de reconhecer um outro impasse. É preciso levar em conta uma certa especificidade do contexto que estamos vivendo, na medida em que se presentifica a todo instante uma dialética entre proximidade e distância. Estamos extremamente próximos (do momento histórico, das mortes, das telas) e ao mesmo tempo distantes – inclusive, o distanciamento social é regra também para os mortos, com quem não devemos ter contato pelo risco de contaminação obituária.
Este é um ponto de recuo em que conseguimos nos situar na realidade social. Assim, podemos combinar quatro citações de Walter Benjamin pra notar melhor a situação:
”A proximidade e a distância são duas relações tão determinantes na construção e na vida do corpo como outras relações espaciais, como o em cima e embaixo, direita e esquerda”;
“há uma relação precisa entre estupidez e proximidade: a estupidez vem, em última instância, de analisarmos ideias de perto demais”;
“A grande arte de fazer as coisas parecerem mais próximas, na realidade, ou na memória. Esse é o poder misterioso da memória: o poder de criar proximidade”;
“Em suma, o que é a aura? É uma teia singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”.
Notem que essas relações não são mero arranjo espacial. Elas se transfiguram em modos de percepção que têm o poder de renovar ou de dissolver a experiência. A aura, conceito-chave de Benjamin, faz comparecer o objeto distante sem a necessidade de possuí-lo – sendo este um modo próprio de desnudá-lo, destruir aquilo que o vela.
Pois bem, perguntemos agora de outra maneira: como falar da morte preservando sua dimensão aurática, sem banalizá-la, sem reproduzi-la sob os moldes de clichês discursivos, mantendo a devida distância que nos permite vê-la, e permitir que algo do Real se escreva na proximidade em nosso discurso? Afinal, há algo de similar entre a linguagem e o espaço. Ambos são condições de nossa experiência, já que não falamos nem através da linguagem ou através do espaço, mas na linguagem e no espaço. O gesto aqui consistirá em afirmar que é preciso uma invenção singular na linguagem e no espaço que permita um bem-dizer sobre os mortos. E não coloco gesto aqui enquanto mera expressão. Somente algo da ordem do gesto (do toque, do sensível) pode escrever no espaço um singular que resiste enquanto irrepresentável, a saber, a própria barbárie. Com isso, conseguiríamos tanto elaborar a distância (sem introduzir a morte e os mortos num prolixismo vazio) quanto aproximá-los, criando uma aura própria à sua agalma. Se pudermos chamar esse gesto de alguma coisa, eu chamaria de a, pra lembrar o objeto petit a de Lacan, aquele objeto não-identificável, que resiste à predicação. Inventar (cada um) um gesto. Ensaiar uma outra linguagem para memoriar o espaço e o vazio daquilo que sentimos. Pra lembrar que algo aconteceu durante a pandemia; algo de irrepresentável aconteceu e não entregamos esse acontecimento ao Anjo da História. Mas, tal como uma letra no real, foi possível inoculá-lo no pensamento.
Micael Correia tem 22 anos e é um escritor não-autorizado. Faz graduação em Psicologia e nutre interesse por Psicanálise, Cultura e Religião.