O dia 05 de maio de 2021 rasga mais uma trágica ferida na cultura do nosso país. O ator, comediante, roteirista, diretor e produtor Paulo Gustavo se tornou mais uma infeliz vítima do genocídio brasileiro. Assim como ele, entre as mais 410 mil vidas perdidas em decorrência da pandemia de COVID-19, inúmeros artistas e trabalhadores da cultura saíram de cena, e isso é algo que cabe reflexão.
Paulo Gustavo foi, sem dúvida, um dos maiores artistas do país. Sua potência cômica garantia acesso à casa de todos os brasileiros. Com um apelo popular honesto e respeitoso, o ator conseguiu se conectar de forma tão intensa e verdadeira com o público que gerou uma identificação capaz de elevar o teatro e o cinema brasileiro. Agora, infelizmente, também deixa todo o país de luto.
Em um país profundamente desigual, a arte e a cultura possuem papeis que vão além de seus fundamentos intelectuais discutidos em meio acadêmico. No abismo entre a dureza da miséria e os privilégios sórdidos de uma elite econômica cínica e traiçoeira, a arte se transfigura em diferentes objetos, trazendo o alívio cômico do riso em forma de entretenimento e uma dose de senso crítico, necessária para a emancipação intelectual.
No itinerário da vida, o humor salva, transforma, alivia, cura, traz esperança e, desde que a pandemia se enraizou no país, as artes se fizeram ainda mais presentes no cotidiano do brasileiro comum – como disse o próprio ator em vídeo recente, antes de sua internação. Foi e é através das artes dramáticas, da literatura, da música, do cinema, da dança e das artes visuais que seguimos em frente, porque foi a arte que nos ajudou a deixar o fardo da vida no Brasil doente bolsonarista um pouco mais leve.
Talvez a pior parte dessa triste história seja o fato de que, nesse mesmo abismo desigual chamado Brasil em que vivemos, enquanto uns vivem o luto da perda, outros abrem a porteira para o grande pasto da própria ignorância, aglomerando milhares de arrobas nas ruas em defesa de um projeto político mentiroso, corrupto e genocida, mais um triste contraste para as páginas do livro da nossa história.
Outro aspecto que cabe reflexão aqui é que: a perda de artistas e trabalhadores da cultura no Brasil ocorre em todos os níveis de relevância. Artistas reconhecidos nacional e internacionalmente (como Paulo Gustavo e Aldir Blanc, por exemplo) escancaram os duros golpes da pandemia na cultura, mas a perda do pequeno artista e trabalhador da cultura local desarticula uma cadeia importante para o sistema das artes e da cultura no país. Cada perda nesse sentido aponta para uma deficiência cada vez maior de articuladores criativos, os quais ajudam a manter a sensibilidade viva e em movimento, os quais fazem a cultura acontecer no coração do país. Por isso, é importante que esse luto seja alimento para nossa luta, porque, em última instância, a arte é o refúgio da liberdade.
Coroadas são as pessoas que dedicam as suas vidas à arte e à cultura, em especial aquelas que nos fazem rir diante do caos e que nos trazem a alegria que preenche os nossos corações de significado. Em um mundo devastado pela dor, pela angústia e pelo sofrimento, rir é um ato de resistência.
Frederico Lopes é artista e educador, graduado em artes pela Universidade Federal de Juiz de Fora, especialista em gestão cultural pela FAGOC. Possui treinamento profissional em conservação e restauro de papel pelo LACOR/MAMM-UFJF. Atuou no setor de curadoria e expografia do Museu de Arte Murilo Mendes de 2013 a 2017. Integrou a equipe de implementação do Memorial da República Presidente Itamar Franco, onde também trabalhou na curadoria e na coordenação da divisão de educação até 2021. É fundador da Instituição Cultural Bodoque Artes e ofícios (2012), da Revista Trama (2019), do Museu de Artes e ofícios de Juiz de Fora (2020) e do Laboratório de Criação em Artes Visuais e Design (ARTELAB – 2020). Acredita na Arte e na Cultura como ferramentas fundamentais para transformação do olhar e criação de novas possibilidades de se exercer a vida.