A ESCRITA DE MICROCONTOS COMO RESPIRO NA PANDEMIA

A Pandemia da Covid-19, que assola o mundo desde o segundo bimestre de 2020, devolveu-nos às nossas casas (para os que possuímos teto), em relação mais próxima (geográfica e temporalmente) com os que coabitam o mesmo espaço, ou com a solitude dos que moramos sozinhos e a qual nos coloca em contato inadiável com nossas emoções e sentimentos mais profundos e arraigados, ligados a medos, tristezas, ansiedade, solidão, dor e vazio existencial.

Acompanhando, diariamente, as notícias nas mídias alternativas, ou afastando-nos delas momentaneamente, vamos percebendo que o que se desejava que passasse logo se mantém e persiste, ainda que alguns neguem a realidade do vírus ou negligenciem os protocolos de segurança consigo e com os outros.

E mergulhados em um cotidiano novo e expandido, em que as folhas do calendário se truncam e se rompem, somos entregues a desafios intelectuais e psíquicos de buscas de estratagemas para sobreviver, resistir e enfrentar o caos instaurado, que parece anunciar o fim de um mundo e, quiçá, o surgimento de outro, melhor, mais justo, mais bonito, mais respeitoso, mais solidário, mais terno – ainda que não possa, eu, visualizá-lo como utopia no horizonte.

Pela necessidade de lidar comigo mesma, com as oscilações de humor, irritabilidade, falta de crença, mas também, de ternuras, de confiança, ausência de tentativas de controle e de ressignificar as experiências que me tocam e atravessam nesse período, recorri à arte como linguagem tanto terapêutica como de criação para dar vazão a aspectos intuitivos, inesperados, inspirados, que se manifestavam sob a forma de escrita, bem como para me redesenhar de outros modos possíveis de ser e existir, em meus 50 anos de idade.

Sendo assim, a prática da escrita literária, como fazem e fizeram outras mulheres, em outros tempos e espaços, é o lugar de refúgio, de abrigo, durantes as tempestades e as marolas. Também tem sido assim para mim pela via de um subgênero nomeado de microcontos ou microficções poetizáveis, num entrecruzar de gêneros textuais. (FERNANDES, 2019)

E por essa prática, que considero formativa, vou inventando possíveis materializáveis para mim, numa escrita privada, mas que não teme se publicizar, de forma digital, em redes sociais, e impressas, atendendo a convocatórias ou espontaneamente, em publicações independentes ou financiadas por editais de incentivo, por editoras fora do main stream ou cartoneiras[1], pretendendo servir, também, para outros, como estímulo poético, sensível, inteligível e mobilizador de outras escritas.

Neste texto apresento minha experiência formativa, a partir da prática educativa/formativa da escrita literária como linguagem artística e recurso de re-existência em meio ao isolamento social e resistência ao Corona vírus, pois que reafirma o lema das Madres de Plaza de Mayo[2], “la única lucha que se pierde es la que se abandona”. (KOROL, 2016, p. 152)

Tenho escrito microcontos há algum tempo. Eles surgem em meus pensamentos a partir de alguma imagem ou situação do cotidiano, muitas vezes advindas de contemplação ou por surpreendente aparição. O texto rapidamente se forma, e eu me sento ao computador para apurar o ritmo e alocar as melhores palavras. Se não os escrevo, não me deixam em paz; ficam comigo o restante do dia. Ao escrevê-los, liberto-os, deixo-os voarem e embelezarem o mundo.

(…) por que sou levada a escrever? […] para me tornar mais íntima comigo mesma e consigo. para me descobrir, preservar-me, construir-me, alcançar autonomia[…] finalmente, escrevo porque tenho medo de escrever, mas tenho um medo maior de não escrever. (ANZALDÚA, 2020, p. 232)

O microconto é tido como um subgênero nomeado de microcontos ou microficções poetizáveis, num entrecruzar de gêneros textuais.

Marcelino Freire chama de “literatura menor”, dentro do conceito de menoridade como espaço às margens ou alternativo, de potência inventiva e criadora.

Para Lucilene Lemos de Campos, “a proposta estética que o micro conto realiza não surge como decalque da prosa tradicional, mas como espaço intervalar, uma terceira-margem poética, um entre lugar que desloca e anula a antiga noção de centro cultural hegemônico”.

O que faço desliza entre prosa e poesia e gira em torno do intervalo de 7 e 500 palavras, que faz parte da definição subgênero. Faço uso de minúsculas, porque soa como transgressor a norma padrão e porque me sugere delicadeza e sutileza. Também não dou títulos, porque seria como etiquetá-los e gosto que a leitura revele o seu corpo.

Quando escrevo o que escrevo, pretendo que sirva e que provoque projeções (como toda produção artística provoca). E, também, como estímulo poético, sensível, inteligível e mobilizador de outras escritas para outras pessoas.

microconto 177

ela apenas deslizava por aí,
de corpo nu,
distraída e atenta
quando é interpelada
pelo sentinela.

‘alto lá, quem é você, qual seu nome,
cadê seu capacete, seu escudo, suas botas de esporão?
responda em prosa e ajoelhe-se’.

‘sou esta que me lê, meia lua inteira,
sol sou e mais amada que ar,
voluta, rodopio’.

‘não te reconheço
e esta porta você não adentra.’

a intuição, no corcel negro
de longas crinas,
apenas segue pelas terras
sem dono
e sem cercas,
enquanto a razão
vestida de cetro e lança
defende o forte.

(…)

microconto 128

ela aqui e ele lá.
cada um recolhido em seu lar,
em momento de quarentena mundial.
ele envia de presente
um áudio com voz e contrabaixo.
ele inteiro. apenas ele,
terno, quente e aveludado
como é o toque dos apaixonados.
pra colocar debaixo do travesseiro
e dormir sonhando com a esperança e a espera,
de que o amor seja o vírus contagiante.

(…)

microconto 132

quando a terra passou a respirar
entre o ventre e o tórax,
foram embora a ansiedade, o estresse e o medo.
o ruído sobre a crosta silenciou
e as vibrações sísmicas diminuíram.
os humanos recuaram,
cessaram de falar e de se agitar.
então, os ursos passaram a rolar nas gramas dos parques,
os esquilos transitaram entre as árvores da cidade,
as tartarugas marinhas invadiram as praias para depositarem ovos à luz do dia,
os golfinhos adentraram os canais,
as águas de veneza ficaram translúcidas.
os efeitos da respiração longa e profunda
aparecem nos músculos relaxados,
nos batimentos cardíacos desacelerados,
na melhor oxigenação das células.
e todos os reinos são invadidos
por uma interna sensação de paz.

(…)

microconto 142

se antes escolhia o inverno,
agora prefere a amenidade da meia-estação.
se optava pelo perfume,
agora se banha com a volatilidade da água de colônia.
se transitava entre os odores cítricos e amadeirados,
agora aceita a docilidade da alfazema.
se sempre tomava café preto,
agora inclui a leveza do chá de hortelã com melissa.
se digladiava-se em busca da razão,
agora se rende ao aconchego da paz.
se teve medo da solidão,
agora se diverte em autorretratos em preto e branco.
se antes perseguia o fixo e o duradouro,
agora convida o efêmero e o mutável.
se antes era aquilo,
agora é isto.
entre fincar ser ou não ser,
agora é solta reinvenção.

(…)

microconto 161

quando o ouvido do mundo
se afina
é possível ouvir as entranhas da terra
no oco das cavernas,
a malemolência do mar
na espiral da concha
e o ronco vibrante do planeta
no silêncio e escuridão da noite.

(…)

microconto 163

ela quis que ele viesse
participar da fogueira julina
com quentão, paçoca e pinhão,
estrelas e lua cheia no céu,
mas ele a recordou
que tem que ser com máscara,
distanciamento e álcool só em gel.

a gente demora uma vida para se tornar
mulher errante, incorreta, indisciplinar
e vem o superego vestido de juízo,
armado de precaução,
querer docilizar o selvagem,
civilizar o prazer.

o bom é que o id primitivo
desequilibra a regra de três
e se perde no desejo, pulsão, impulso, satisfação.

(…)

A escrita funciona e tem funcionado neste contexto de isolamento como um dispositivo de formação; se entende como um ato, uma prática que envolve a constituição ou a produção de si, que permite ensaios de modos de subjetivação, principalmente, por tratar de criação, criatividade, intuição, imprevisibilidade, de devir, para além da ordem, no caos.


Referências

ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 1, p. 229, jan. 2000.

FERNANDES, Renata. A donzela guerreira e outros microcontos, volume 1. SP: Urutau, 2019. KOROL, Claudia. Feminismos populares: las brujas necessárias en los tiempos de cólera. Nueva Sociedad, n, 265, p. 142-152, sep./oct 2016.


[1] As editoras cartoneras são alternativas artesanais ao modelo padrão de publicação e comercialização, que utilizam papelão (cartón) reaproveitado para a publicação. Surgiram em 2003 com a criação de Eloísa Cartonera, em Buenos Aires e se expandiram pela América Latina. (https://www.blogs.unicamp.br/marcapaginas/2019/04/22/cartoneras-a-publicacao-de-livros-como-instrumentos-de-resistencia/)

[2] Trata-se de um movimento e uma associação argentina, formada em 1977, durante o governo ditatorial de Jorge Rafael Videla, com a finalidade de encontrar pessoas desaparecidas nesse período. (https://www.infobae.com/america/mexico/2020/08/07/como-las-madres-de-plaza-de-mayo-mujeres-en-busca-de-sus-hijos-desaparecidos-marcharan-el-primer-miercoles-de-cada-mes-en-el-corazon-de-mexico/)


Renata Sieiro é pós-doutora em Educação pela UNICAMP e docente do Ensino Superior. Microcontista, autora de “A donzela guerreira e outros microcontos”. Colagista amadora, tendo produções publicadas em periódicos como Revista Alegrar e Revista Clima.com, além de livros, mostras e exposições coletivas. Também é fotógrafa amadora. Conheça mais de seu trabalho no Instagram.


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