O vírus, indomável num país desgovernado como o nosso, se espremeu na fresta da porta da casa e entrou. Descansou em grande parte da família, rasgou no meio a rotina diante de todos e deu peso aos dias. A avó, blindada pela vacina, assiste ao caos bem de longe, ensaiando um sorriso debochado. Os tios estão tomando cloroquina e as primas ainda têm forças para tomarem a medicação da mão dos pais. Eu, salva pela minha incansável obediência às regras de segurança sanitária, teimei em testar negativo. Dois não reagentes foram o necessário para que eu acreditasse. Estava no ninho contaminado, armada de álcool em gel, escondida pela pff2 e, criminosa às leis do agora, refugiada no meu quarto.
É o nono dia do isolamento mais torto que precisei fazer. Porque o vírus me anestesiou sem me encostar. O que, apesar de não querer fazer desfeita, não me preparei para vivenciar. Eu tinha plano para tudo: me isolar com a família, fugir para outro lugar a tempo de não colocar ninguém em risco, tinha até mesmo a rota de fuga para o hospital, o telefone de ambulância brilhando num imã na geladeira. Eu tirei a poeira dos jogos de tabuleiro para a quarentena sintomática. Só não planejei me isolar no miolo do vírus sem ser notada. O que embala a solidão é a segurança em ser isolada a tempo, em sentir o pulmão inspirar e expirar a irretocável saudade.
Nos primeiros dias observando o mundo da janela, escrevi sozinha contra o vazio. Poesia adolescente, versos de músicas que nunca tocarão no rádio, cartas de amor, contos vingativos, roteiros de novelas mexicanas. Despi todas as palavras do meu corpo. E completamente nua, li — não só os livros dançaram na estante, mas os diários antigos também. Bisbilhotei tudo o que pude. Revisitei as fofocas e fui do passado ao futuro, trancada no cômodo.
Lá pelo sétimo dia, o eco me apertou um pouco mais na cama. As quatro paredes me encaravam, parecendo tímidas, mergulhadas em um silêncio visual. Seduziram minhas canetas, tentaram me conquistar a rimar por tudo. Se eu não tivesse me distraído com uma folha de papel, teriam me encontrado, horas depois, amarrada ao teto por uma frase bonita.
O frio agora avança pelo chão e escala os móveis. O ar, tão entediado quanto eu, protesta em uma necessidade física, certeira e desesperada: é preciso gente para não virar bicho. É preciso prosa boba, abraço desajeitado de até mais, humor áspero, som de violão ao vivo para dançar. É preciso encostar as esquinas do corpo, encontrar os olhos no espaço, beijar as coincidências da vida. Quando começo a sonhar, me interrompe o calendário: ainda não, ainda não, ainda não…
Com a dor subjetiva latente no peito diante dos dias que se arrastam até o desaparecimento dos sintomas que ecoam nessa casa, peço chamego silábico. Colo literário, rimas de dengo e amor romântico. Faço o mesmo: tiro as palavras mais atraentes do armário, me visto toda de prosa, sublinho o chão com meus verbos envelhecidos pelo dicionário e escrevo com o corpo. Remexo as águas do coletivo, subo a poeira do laço e escorrego desapressada para dentro de um abraço textual. Mesmo não sendo religiosa, me vejo munida de fé gramática para atravessar. E como quem diz amém, assim seja, que Deus esteja com você, eu digo: se tirarem o corpo do mundo, atirem a palavra no corpo.
Fernanda Zeloschi é estudante de Psicologia e, quando ninguém está olhando, escreve e compartilha seus questionamentos e descobertas na página @fazerafetar.