CASA

Mês passado, comecei a estudar neurociência. Me lembrava vagamente de alguns conceitos que aprendi no ensino médio como dendritos, bainha de mielina, terminal axônico e sinapses. Me lembrava, também, das partes do encéfalo e de suas respectivas funções básicas, mas meus conhecimentos biológicos não me levaram mais longe do que isso. Entre livros e entrevistas, uma fala do neurocientista Ivan Izquierdo me saltou aos olhos: Somos aquilo que decidimos esquecer. Gostaria de dizer que todas as coisas que eu quis esquecer foram, de fato, esquecidas, mas não seria verdade. Talvez querer e decidir sejam coisas diferentes.

Ela foi embora em uma manhã quente de domingo, daquelas em que o céu está todo azul e acordamos levemente desconfortáveis com o clima abafado do quarto fechado. Lavínia sempre acordava depois das onze, mas quando abri os olhos às sete e quarenta e cinco, ela estava sentada do outro lado da cama com o celular na mão e fones de ouvido. Ela não me viu. Por alguns minutos, cogitei voltar a dormir, ou até mesmo fingir que ainda estava dormindo; mas naquele momento, isso parecia errado. Quando ela finalmente olhou pra mim, eu não recebi um sorriso, muito menos um bom dia. Naquela fração de segundo, o encontro de seus olhos verdes nos meus me disseram com clareza que aquele era o nosso ponto final.

Por experiência pessoal, términos são constituídos de alguns momentos chave: “Precisamos conversar”; “as coisas estão difíceis”; “não é você, sou eu”; “vamos ser amigas”. Por mais especial que Lavínia seja – e acredite, ela é -, ela não resistiu ao impulso de reproduzir aquela receita também. Eu ouvi cada palavra, mas não levantei a voz contra nenhuma delas. Eu não concordava com nada que estava sendo dito, mas era claro para mim que de nada valia insistir. Eu não queria ter que convencer ninguém a me amar. 

Outra coisa sobre a memória é que ela é dividida em alguns tipos. Entre os principais, estão a memória de curto prazo, longo prazo e sensorial. A memória de curto prazo pode guardar informações por segundos, minutos, ou até horas; essas informações não costumam ser muito úteis, então o nosso cérebro abre espaço para outras coisas. Nesse momento, gostaria de mover todo o meu arquivo interno sobre amor para a memória de curto prazo, e assistir enquanto meu corpo deixa tudo ir embora pelas próximas horas. 

A primeira vez que a vi, ela estava de mãos dadas com outra pessoa. As duas pareciam felizes, aquele tipo de casal que se vê em capas de revista de jardinagem e propagandas de sabão em pó; mesmo assim, algumas semanas depois, elas estavam separadas. Acho graça do pensamento de que, possivelmente, quem olhava para nós duas também tinha a mesma sensação de propaganda de sabão em pó. 

Quando fiquei sabendo que ela estava solteira, o universo não demorou para nos colocar na mesma sala mais uma vez, agora levemente alcoolizadas. Me lembro do cheiro do perfume que ela usava naquela noite, e de como sua boca encaixava na minha como nenhuma outra. Naquele dia, cheguei em casa e não pensei nela. Na verdade, não pensei nela pelas próximas semanas, até uma notificação no celular de um número desconhecido. Se tem uma coisa toda nessa história que minha memória me fez esquecer foi ter dado meu número de telefone para ela, mas que bom que o fiz.

Revirando meus cadernos, me deparo com uma lista de coisas que prometemos fazer juntas, algumas marcadas, a maioria não. No mesmo caderno, rascunhos dos poemas que escrevi para ela, muitos que ela nem chegou a ler. Em uma conversa casual na mesa da sala, uma amiga minha uma vez me disse que as pessoas dedicam muito do tempo delas para mim. Não posso negar, já ouvi algumas músicas e li alguns textos que pessoas escreveram para mim, cada um com um objetivo diferente. Escrever, pensar, produzir, essas coisas levam tempo, mas principalmente levam sentimento. O que minha amiga não sabia era o quanto eu me dedicava primeiro.

Esperei receber uma mensagem de texto de Lavínia naquela noite, semana, mês. As suas justificativas começaram a fazer cada vez menos sentido na minha cabeça. Eu poderia ter pedido para que ela ficasse. Eu poderia ter argumentado de volta. Eu poderia ter criado mil e uma soluções para toda a lista de desafios que ela trouxe. O problema é que ela não queria uma solução; ela queria sua liberdade. Liberdade essa que sempre fiz questão de dar, deixar as portas e janelas abertas, retirar as cobranças do nosso vocabulário pessoal, e mesmo assim não foi o suficiente. Talvez todas aquelas conversas sobre individualidade e espaço tenham ido para a memória de curto prazo de Lavínia.

Somos responsáveis por armazenar o que julgamos importante, assim não cometemos os mesmos erros mais de uma vez. Enquanto sociedade, percebo que falhamos nessa missão de lembrar de nossos erros passados e construir a partir deles. Algumas pessoas não estão interessadas em construir, muito menos em conjunto. Eu estou parada na frente de uma pilha de tijolos e cacos de vidro onde minha casa costumava estar, mas não esqueço de tudo que fez com que ela ficasse de pé um dia. Sou feita daquilo que decidi lembrar.


Gabi Guarabyra é atriz, diretora, dramaturga e professora. É pós-graduanda em Gênero e Sexualidade pela FACED-UFJF e compartilha frentes de trabalho teatral no Coletivo Feminino e no Núcleo Prisma.


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