Minha missão junto à TRAMA é, de alguma forma, um pacto comigo mesmo, de que vou encontrar tempo, espaço e meios de concentração para traduzir em palavras algo que me fisgue ao longo do mês, geralmente em associação com outras produções artísticas. Dessa vez, me perdi mais do que de costume; foram tantas coisas que não pude parar, muitas fisgadas, e a mente centrífuga. Então trago algo de uma fisgada bem grande, que acaba absorvendo muitas outras, como um buraco negro.
Acontece que escrevo vivendo dentro dum cenário real que exala desespero, desamparo, e desvela toda uma máquina de moer carne que já conhecíamos, pois nenhum corte foi de fato tão silencioso que não fosse gerando, mesmo que numa ressonância acumulativa, uma série de traumas – chamamos Brasil. Agora tudo tomou proporções gigantescas que marcam frações de segundo do cotidiano, no mais íntimo e mínimo de tudo – imagens e dinâmicas de escalas globais e microscópicas colidindo com as desigualdades entre continentes, países, regiões, cidades, bairros… as maneiras como seres humanos vão se juntando, separando, agrupando… para viver e morrer.
A pandemia embrulha o planeta com a dispersão de um vírus através das conexões sociais de seres humanos no espaço e acaba por fornecer uma série de armas simbólicas para a visão dessa espécie atingida de seres vivos, a humana, criando um outro, um inimigo, que talvez nem seja vivo, mas “intruso” entre nós e “astuto” para “se aproveitar” dessa necessidade vital que temos de respirar, expirar e inspirar. Para existir, temos de borrar todas as fronteiras entre dentro e fora do corpo de cada um, tão constante que se torna algo involuntário, impensado, e acreditamos nesse universo separado do resto que é embrulhado pela pele e forma um corpo que é alguém.
Agora. Cobrindo narinas e a boca. A ideia é não expor as vias aéreas ao que vem de fora. Tapar esse buraco, filtrar o ar, evitar a contaminação por esse ser “infiltrado” entre nós. Isso já é muito pra cabeça. Soma aí um recorte territorial, um Estado, um governo, uma série de ações que estão para além do eu. Do que habita esse corpo a se fechar, num isolamento.
Se mesmo antes da pandemia eu já vinha dirigindo muita atenção para as frestas, brechas, fissuras, rachaduras, rugas, fendas, buracos, sulcos, poros, micro-crateras que fazem da pele esse órgão de contato e atrito, que nos isola, impermeabiliza e ao mesmo tempo permite tantas trocas entre dentro e fora, protege e impele, tensão e tesão, exalando odores, com texturas e cores, tantos elementos a carregar dimensões simbólicas, camadas de sentido, índices contraditórios de origens transcendentais e valores arbitrários…
Com a pandemia, ficou difícil – e acho que não só pra mim, muito pelo contrário – deparar com a latência das aberturas, dos vazios gigantescos que contemos em nós. A sensação de conviver com esses seres tão mínimos que circulam no ar entre corpos e escapam das ondas de luz com seus nano-corpinhos, parece colocar em xeque nossas membranas fronteiriças. Cada 0,1 milímetro de abertura – cerca do tamanho de uma única célula humana – já é suficiente para a passar, de uma só vez, um turbilhão desses vírus de ínfima estatura, seus 0,00015 milímetros munidos de um poder destrutivo para nós que respiramos.
O que fazer com esses enormes buracos tão diminutos? Com tanto vazio!… Há algo de medo. Não um medo banal, das coisas que são notícias, mas um medo que parece brotar no fígado e apertar os músculos quando menos posso esperar. E venho num exercício contínuo de revisar, encarar o vazio, fazer dele morada, condição criativa. Dessa dúvida aguda veio meu encontro psicanalítico com Seu Medinho.
O Senhor Arquimedes Tomas de Braga Velho é (porque sempre será) um oleiro do Vale do Jequitinhonha, tido como um mestre por seu trabalho com o barro. Algumas de suas falas foram registradas e renarradas pelo jornalista gaúcho Mauro Santanaya a partir de sua vivência no nordeste de Minas em vivo contato com Seu Medinho e seu saber-fazer. Fui tomar conhecimento da existência sábia de Seu Medinho por um texto de Mauro publicado na Ilustrada da Folha de S. Paulo, em 30 de Setembro de 1982, intitulado “A razão do oleiro”. Da fala de Seu Medinho me vieram imagens, busquei trabalha-las num processo poético e de autoanálise que também grita pra ser posto pra fora de mim. Usei imagens capturadas da internet, ilustrações de pretensão científica do espaço além do planeta Terra, de seu satélite, a lua, e do que a física chama de buraco negro – também o vazio-cheio que justifica tantas buscas. Misturei numa sequência de fotografias que tirei dum conjunto de impressões feitas com Carolina Cerqueira (durante residência artística na Casa de Cultura/UFJF, em 2012), quando decidimos escanear nossas próprias mãos fazendo diferentes gestos. Em 2021, juntei tudo isso num videopoema: “seu medinho”.
Segue o trecho de “A razão do oleiro”, escrito por Santayana, que tratei de ler em voz alta e gravando para o vídeo:
Observei-lhe que, sem gente, para que as coisas? Medinho disse que Deus podia ter feito coisas para admirá-las, em lugar de modelar o homem, que deu no que deu. - Você sabe que, na verdade, o que o oleiro faz é cobrir o vento, o nada, porque uma peça de barro é isso: uma separação no vazio. Eu quando estou trabalhando, não penso no vaso, na vasilha: penso no espaço que eu estou tapando. Não foi o que Deus fez? O que ele fez foi isso, mudar a forma do vazio. Ou não foi mesmo? Aí eu não penso no barro, mas como vai ficar o canto do lugar que eu vou cobrir.
(a quebra das frases em versos é minha culpa)
Tálisson Melo é Artista-pesquisador. Doutorando em Sociologia e Antropologia na UFRJ. Publicou o livro “Mesmo Sol Outro” com Carolina Cerqueira (2018). Atualmente trabalha em projetos curatoriais-editoriais e de pesquisa em Montevidéu, Juiz de Fora e Nova York – emaranhando artes visuais, poesia, design, arquitetura, cinema, história e ciências sociais. @talisson.melo @mesmosoloutro