“Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol quente, que às vezes custa muito a passar, mas sempre passa. E você ainda pode ter muito pedaço bom de alegria… Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua.”
– João Guimarães Rosa, Sagarana.
Biscoitos chineses da sorte não parecem algo muito higiênico, e embora seja ponto pacífico que recortar tirinhas de papel sulfite impresso com tinta Epson e colocar dentro de massas crocantes é no mínimo estranho, mais estranho ainda é não aceitar pegar o seu quando pede a conta no restaurante. Mas existiam ainda outras contradições.
Estava em Mariana, Minas Gerais, e no cardápio, além pratos orientais, era possível pedir uma Tubaína ou um frango com ora-pro-nóbis. O freguês deve ter razão no seu paladar, não importa qual seja; importante é vender bem. Não julgo o dono do lugar. Julgo, talvez, quem come ali. Mas todo esse ambiente barroco e pós-moderno não é o ponto alto. Eu comia sentado à mesa 16, debaixo de um peixe empalhado que ficava na perpendicular da janela da fachada do prédio. Dali, eu poderia chamar o garçom e também continuar olhando para fora e vendo as casas tortas na rua torta, onde turistas como eu iam e vinham com suas papetes, suas companhias e seus sorrisos de recesso profissional.
Pedi a conta e o Jorge, um garçom angolano que estava em Minas há mais ou menos oito anos, me trouxe dois biscoitos embrulhados num papel branco com detalhes vermelhos. “Dois, Jorge?”. “Claro! Se não gostar do primeiro, você escolhe o outro; e se os dois forem ruins, meu nego, você tá fodido.” Ele era sábio. Eu já vinha pensando nisso, inclusive. É cada vez mais difícil viver sem acreditar que alguma coisa transcendente está guiando você de um mundo invisível. Seja essa coisa deus, sua lua em escorpião, as reações a uma foto de maiô em Búzios… Acredito um pouco em cada uma delas, mas não o suficiente. Seria mais fácil se acreditasse, teria bordas esse buraco que parece ser a ausência que habita em mim. Faltavam catorze horas para o Reveillon. O tempo parecia auspicioso para dar um voto de confiança aos folheados de papel e coliformes.
“A vida trará coisas boas, se tiver paciência”. Não posso condenar a mensagem, embora fossem oito palavras do mais puro suco do clichê motivacional que transborda no mundo. Eu ri. O tempo vinha me trazendo surpresas. Meia dúzia de cabelos brancos, mais barriga, menos pescoço, estabilizantes de humor, o gosto por charutos. Também estava com certeza mais titulado, embora tenha dúvidas honestas a respeito de estar ou não mais sábio. Ganhei mais dinheiro do que imaginava. Perdi mais do que precisava. Uma vida pateticamente comum que já deixava no rosto, antes liso, os vincos de preocupação e cansaço com que pude domar o desejo de ser simplesmente feliz. Mas minha sorte era péssima… Não me via mais como alguém paciente, tenho urgência.
Mostrei o papelinho ao Jorge. “Só esperar então, meu querido, vem coisa boa aí”. E foi atender a um casal bem gordo que estava sentado perto do balcão. O problema é esperar. Nunca compreendi como pode se comemorar aniversários ou anos novos. Nunca é mais um de vida, ou de trabalho, ou de realizações; é sempre menos um de funcionamento. Menos um porque tive vergonha, medo, raiva do vizinho do 1006 que transa gritando em plena quarta-feira. Só quem ganha com isso são os calendários, eu não. Os joelhos estalam, a ereção demora, a companhia mais duradoura é dos gatos. Não, meu camarada, esse biscoito é de des-sorte. Tanto faz, na verdade. Meti o outro biscoitinho no bolso e saí para caminhar porque estava fresco.
Acendi um Derby vermelho e deixei que minhas pernas levassem meu espírito para um passeio. Andava e me lembrava do meu pai quando eu era pequeno. Muito religioso, eu detestava que ele fumasse ou bebesse cerveja. Não ia à padaria comprar nenhuma das duas coisas porque achava um desaforo sem tamanho. Ele fumava Derby branco, coitado. O tempo muda as coisas de lugar sem cerimônia. Se pudesse me ver hoje, o velho saberia que me tornei alguém bem mais parecido com ele do que eu jamais quis. Já não pesa saber disso. Brinquei com um vira-lata encardido na pracinha, conversei com um pipoqueiro que aproveitava o clima do interior para vender pipocas com bacon, bebi mais uma cerveja e voltei para minha pousada. Faríamos uma pequena festinha de confraternização.
O lugar em que estava hospedado era bem pequeno, mas incrivelmente charmoso. No total éramos cinco pessoas, sendo que duas eram o casal de donas. Fizemos comidas comuns. Uma carne de panela, frutas, arroz, acho que salpicão, ou maionese. Colocamos a mesa na garagem e ficamos ali, escutando playlists aleatórias de mpb enquanto comíamos e bebíamos mais. A conversa girou em torno de fisioterapia, e de um vizinho da frente que costumava implicar com a dona da pousada. Erramos a contagem regressiva por alguns segundos, o que fez com que entrássemos no ano novo mais cedo que a cidade. Ficamos ali, daquele jeito, sem muita pressa de nada. Não me lembro bem, mas acredito que tenha subido ao meu quarto por volta das duas horas da manhã. Ainda mexi com o Jorge, que ia pra casa passando em frente ao casarão quando eu estava fumando na janela.
Sentado na cama, tateei o bolso da bermuda pra tirar a chave, a carteira, o maço de cigarro e o isqueiro, e aí me lembrei do segundo biscoitinho: ele estava ali. Ora, um ano acabava de terminar e eu estava oficialmente abrindo novo ciclo; por que não tirar mais uma vez minha sorte? Ainda que não estivesse bêbado, me sentia mais leve, meio dormente. Quebrei a casquinha sem comer dessa vez; eu tinha comido quase meio pudim feito pela Ana. “Ninguém nos ensina a ser só.” Dessa vez, eu não tinha alguém para mostrar o oráculo e pedir opinião. Todos estavam em seus quartos ocupados. Eu, não. Eu estava sozinho.
Crise de meia idade é uma coisa que começa quando o sonho da vida adulta se transforma na realidade do desencontro banal. “Você deve se amar primeiro”. “Ninguém muda ninguém”. “Tudo na vida passa”. “É preciso perdoar e seguir”. “Cada momento é único”. “Sinto muito, me perdoe, eu te amo, sou grato”. Eu mesmo seria capaz de escrever biscoitos da sorte a minha vida inteira, de uma forma que em algum momento fosse capaz de desbancar o Pastorino. O meu augúrio de réveillon, porém, não era tirado de um gueto gratiluz. O biscoiteiro foi perverso e sofisticado, ele fez uma citação. Jacqueline Kelen, 2001, O espírito da solidão.
Na cozinha do lugar havia um relógio que, na minha cabeça, marcava sempre 10h28 da manhã. O ponteiro menor era um garfo; o maior, uma faca. Fui beber água e fiquei ali, recostado na pia, olhando para o relógio enquanto ouvia o ronco vindo de um quarto e o barulho abafado do casalzinho que transava com cuidado no quarto dos fundos para não chamar atenção.
“Ninguém ensina mesmo”.
Desejei do fundo do meu coração que a roncadoroa virasse de lado para não ressecar a garganta e que o casal pudesse gozar com a mesma intensidade e quantas vezes fosse possível. A gata arisca que também era hóspede subiu na pia e pediu água da torneira. Conversei com ela por alguns minutinhos até que a casa ficou quieta. Dormindo, eles estavam todos sós como eu. Me senti acompanhado e com vontade de deitar também.
Acordei cedo no outro dia e já fui procurar alguma referência de Camus na biblioteca da Madá, só encontrei coisas de Sartre. Tomamos café todos juntos e saí por aí à procura de um baú antigo para guardar roupa de cama. Hoje eu penso que nunca voltei naquele lugar, embora morra de vontade. Acho que, lá no fundo, eu quero voltar do mesmo jeitinho. Repetir me deixa confortável. Quero voltar e encontrar as mesmas coisinhas ali. Reificar um ritual.
Nada aconteceu desse jeito.
Foi exatamente assim.
Nesse meio, existo eu.
Vinícius Lara é psicanalista, historiador, fotógrafo amador e um apaixonado pelo absurdo.