Quem passeia desatento pelas ruas e vielas do Rio de Janeiro não imagina as histórias que essas antigas construções têm para nos contar.
No período da fundação da cidade a dominação sobre os corpos e liberdades das mulheres pelo patriarcado era visível. Aquela sociedade entendia que, para o homem “a rua significava a liberdade, o desconhecido, e para a mulher a perda da virtude”. As mulheres, normalmente as com melhor poder aquisitivo, quase nunca eram vistas passeando pelas ruas da cidade… alguns historiadores afirmam que isso ocorria porque as ruas eram sujas e mal-acabadas, o que as impedia de andar livremente. As mulheres pobres, aquelas que precisavam trabalhar para sobreviver, elas não podiam se dar ao luxo de ficar em casa, se dedicando aos filhos e ao marido.
A Santa Casa de Misericórdia, no Centro do Rio de Janeiro, é sem dúvida a melhor construção para voltar no tempo e aprofundar, bastante, sobre como era o papel da figura feminina no período colonial. Neste local de amparo havia um setor chamado Recolhimento, onde eram recebidas mulheres por diversos motivos, como: órfãs à espera de um marido, esposas desobedientes, viúvas, mulheres que queriam seguir a vida religiosa, mulheres que queriam fugir de maridos extremamente dominadores, ou seja, um local que simbolizava o que havia de mais cruel na dominação masculina, mas que também servia como um recurso de fuga e resistência.
Naquele tempo, ler e escrever eram atributos exclusivamente masculinos. As mulheres que quisessem estudar deveriam adentrar no convento feminino, única alternativa para dedicação aos estudos, pois os homens consideravam não ser necessário ter educação letrada para a realização das tarefas doméstica.
Sob o olhar dos colonizadores e principalmente da igreja, essas mulheres deveriam cumprir um papel que se resumia em cuidar do lar, dos filhos e do marido, pois eram vistas como inferiores e ocupavam o mesmo lugar que as crianças e os doentes mentais, tamanha insignificância a que foram designadas.
Até mesmo alguns viajantes estrangeiros se mostravam perplexos ao relatarem a forma como essas mulheres viviam confinadas e sob constante vigilância em suas casas. Este atento olhar estrangeiro compreendeu que as casas cujas fachadas eram dotadas de gelosias cerravam um espaço de confinamento feminino em seu interior. De origem árabe, as gelosias eram janelas de madeira que se abriam verticalmente para o exterior e, apesar de seu curto movimento, permitiam alguma circulação de ar no ambiente. Ademais, essa diminuta abertura possibilitava ao morador observar a movimentação das ruas sem ser notado por quem estivesse do lado de fora.
Foi somente no século XIX, com a chegada da corte portuguesa, que os moradores foram obrigados a trocarem suas janelas, adaptando-as para o uso do vidro. Neste momento a luz e uma melhor circulação de ar passaram a adentrar nessas residências, simbolizando uma cidade com ar civilizado, moderno e europeu.
Com a abertura das janelas e uma maior exteriorização dos lares, o convívio social, costume tipicamente francês, se tornou intenso e as mulheres passaram a frequentar os eventos sociais e passou a conquistar seu espaço na sociedade.
Hoje, das gelosias, não nos contam mais as antigas casas, que preferem esquecer esse tenebroso passado, mas se fazem imortal em outra voz que todos paramos para ouvir, na canção Flor da Idade, de Chico Buarque, que continua se referenciando à mulher, mas agora sob uma outra ótica.
A gente faz hora, faz fila na vila do meio-dia Pra ver Maria A gente almoça e só se coça e se roça e só se vicia A porta dela não tem tramela A janela é sem gelosia Nem desconfia Ai, a primeira festa, a primeira fresta, o primeiro amor
REFERÊNCIAS
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Cynthia Cavalcante é graduada em artes plásticas pela Escola de Belas Artes da UFRJ, mestre em História da Arquitetura pela UFRJ, Arte Educadora pela UERJ e, atualmente, cursa Especialização em Saberes e Fazeres no Ensino de Artes Visuais pelo Colégio Pedro II, além de Coordenar o Centro Multimídia do Ecomuseu Ilha Grande.