Dizem que Michelangelo foi anatomista, escultor, poeta, arquiteto e pintor – esse último ofício ele fazia meio que com o nariz torcido, mas nada comparado a torção do nariz de seus ajudantes por causa do seu mau cheiro, informação raramente mencionada. Fato é que os dizeres mais ditos construíram a imagem de um Michelangelo impecável, virtuosíssimo e genial, que tem espaço no altar artístico do subconsciente de muitos como um dos maiores artistas do dito renascimento italiano.
Nasceu em Caprese, perto das redondezas de Florença, com pai de família aristocrática e com uma inclinação artística divina, dizem também. Mais tarde, virou protegido do Lorenzo de Medici, banqueiro e mecenas podre de rico, e não só dele, à medida que foi ganhando cada vez mais fama e notoriedade. Certo dia, em 1508, o Papa Júlio II o encarregou de pintar a abóbada da Capela Sistina e ele, apesar de torcer muito o nariz, pintou os episódios do Gênesis, dentre eles: A criação de Adão.
O afresco pintado retrata o momento em que Deus dá origem à humanidade, simbolizada no Adão, segundo os textos bíblicos, primeiro homem. O ponto central para o qual é conduzida nossa visão é o ato do toque iminente entre o dedo de Deus e de Adão, o presente divino: a centelha da vida. E aqui descemos dos esplendores celestiais onde habitam as histórias renascentistas de Michelangelo em seu altar e chegamos ao chão dos dias de nossa enfadonha e epidêmica realidade. Poderíamos continuar nesta análise formal calorosa, citar a influência humanista e antropocêntrica na retratação de Adão e, possivelmente, na anatomia cerebral no manto de Deus e teorizar sobre a Eva ser a figura representada ao seu lado e coisas mais, mas isso tudo também muitos já disseram demais. Vamos, a partir daqui, deixar de dizer um pouco o que dizem.
A obra se imortalizou como um clássico, e como todo clássico foi alvo de muitas releituras, alvo da reprodutibilidade e, consequentemente, da mercantilização com nossa astuta indústria cultural. No meio de tanta repetição, eu torci o nariz feito o Michelangelo para a ideia de desenvolver um trabalho inspirado nessa pintura. Todavia, esse famoso gesto do toque divino me foi tão oportuno quanto a vacina nessa pandemia. Seu conceito coube certo; completamente contraposto do hoje. Adoro contrapostos.
INSPIRAÇÕES E ASPIRAÇÕES: PENSAMENTO E PROCESSO ARTÍSTICO
“Dar a mão a alguém sempre foi o que esperei da alegria.”
A paixão segundo G.H, Clarice Lispector
“Como se faz pra dar as mãos?”. De imediato, essa é uma pergunta aparentemente simples, com uma resposta aparentemente simples, mas ela assume uma alta carga de complexidade quando a transferimos para os tempos de pandemia, de ensino remoto, de interatividade digital e modernidade líquida. Os milímetros que separam o toque parecem ter ganhado quilômetros inteiros. Os contatos deixaram de ser ato, têm se transformado em números e não se sabe bem se são as telas nossos novos muros ou janelas. Será que o toque pós-contemporâneo só é passível de existir sendo touchscreen? A iminência do toque não parece mais tão certa, a duração virou anos, e não se pode dar bem certeza quanto a aproximação das mãos, não se pode mais dar bem certeza de nada, elas bem podem estar em movimento de afastamento ainda maior. Quem sabe.
A obra foi feita sobre papel manteiga, por uma busca do reflexo da fragilidade e volatilidade das relações físicas pós-contemporâneas. As mãos foram pintadas com tinta à óleo, com o máximo da estética realística que minhas limitadas habilidades me permitiram reproduzir, na busca da representação de uma fisicalidade real em contraposição à artificialidade digital ao fundo. O toque, o presente divino representado na pintura, hoje, no atual contexto pandêmico, pode ser convertido em danação; o toque não é mais símbolo de passar a centelha da vida, mas do vírus, uma centelha da morte.
Por fim, agora dirijo a palavra, sem nenhum decoro, ao ocupante do altar artístico do subconsciente dos amantes da renascença: – Deus, Michelangelo, essa figura vigorosa que você pintou é um gozador: criou a humanidade com o mesmo gesto que hoje pode causar sua extinção.
Nathaly Rocha é mineira de berço e guarulhense de coração. É artista desde sempre. Atualmente, cursa Artes Visuais na UNESP. Acompanhe o trabalho da artista pelo Instagram.