Conhecida pelo slogan “tudo vê, tudo sabe, tudo informa”, a Carriço Film produziu imagens que permeiam o imaginário coletivo do município de Juiz de Fora e região. A empresa cinematográfica foi fundada pelo cineasta, fotógrafo, pintor e exibidor de filmes, João Gonçalves Carriço (1886-1959). Através da produção dos cinejornais e do registro fotográfico em still (fotógrafos de cena), diversos eventos de caráter político, econômico, cultural, social, esportivo e religioso foram registrados entre 1933 e 1956.
João Carriço é considerado um dos pioneiros do cinema mineiro e brasileiro. O cineasta era filho do imigrante português Manoel Gonçalves Carriço, proprietário de uma empresa de carruagens e de serviços funerários na cidade. Com duração média de seis a dez minutos, seus cinejornais eram exibidos no Cine Teatro Popular, de sua propriedade, inaugurado em 1927.
O Cine Teatro Popular era denominado pelo próprio fundador como “o amigo do povo”, devido à exibição de filmes a preços módicos, que favoreciam o acesso pelas classes populares. Mesmo com o encerramento das atividades da empresa, em função de dificuldades financeiras, o Cine Popular continuou em atividade até 1966.
A partir de então, iniciou-se uma verdadeira saga no processo de preservação do material audiovisual produzido pela empresa. Já no final da década de 1960, a família Carriço doou ao Museu Mariano Procópio (MG) alguns objetos (câmera e projetor de filmes), documentos (retrato a carvão, certificados de censura, panfletos publicitários e outros itens avulsos), bem como parte da produção audiovisual da empresa (rolos de filme e cerca de 3000 fotografias).
Atualmente, parte dessa produção cinematográfica encontra-se depositada na Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Mediante o cenário de abandono e descaso enfrentado pelo patrimônio cultural brasileiro – inclusive o cinematográfico –, os trabalhadores da área de cultura de Juiz de Fora manifestam grande preocupação com a salvaguarda e preservação desse acervo.
Quem não conhece a trajetória dos rolos de filme da empresa pode estar se perguntando: afinal de contas, por quais razões esse acervo não se encontra depositado no Museu Mariano Procópio ou em alguma outra instituição cultural juizforana?
Para responder a essa pergunta, fez-se necessário investigar a trajetória desse material nos arquivos do Museu Mariano Procópio. Nos registros institucionais da gestão de Geralda Armond, verifica-se que parte dos rolos já se encontrava sob a guarda da instituição em 1966. Também foi possível constatar preocupação por parte da administração municipal e da então diretora do museu com a preservação desse material e o risco oferecido às demais coleções da instituição. A composição química do material – à base de nitrato – é geradora de potenciais riscos de autocombustão, quando não submetido às condições adequadas de climatização.
No relatório de 1976, consta que, em caráter provisório, “a municipalidade determinou que fossem depositados os filmes da Carriço numa pequena sala ao lado do orquidário no parque do museu, adaptando-a com ar condicionado”. Nas palavras de Geralda Armond, “fui muito objetiva e clara no meu despacho quando, da aquisição dos filmes para o Museu Mariano Procópio, não permitindo fosse esse material levado para o interior do museu, visto ser ele auto-inflamável”. A diretora, reconhecendo o material como “altamente cultural”, considerava louvável que este fosse adquirido pela instituição, mas, ao mesmo tempo, lembrava às autoridades municipais competentes da época o perigo que representava aquele material celulóide dentro de um museu”. Destacava, ainda, a necessidade de se converter os filmes em “material moderno, que não oferecesse perigos à Casa”.
Ao longo do ano de 1976, verificam-se algumas cartas trocadas entre Geralda Armond e o então secretário municipal de cultura de Juiz de Fora, Joel Neves, nas quais manifestavam preocupações com a preservação do referido acervo. Ambos tratavam, por exemplo, da confecção de prateleiras para acondicionamento dos filmes e do monitoramento de temperatura da “saleta da Sociedade de Orquidófilos de Juiz de Fora”.
Em 1977, Geralda Armond escreve a Francisco Antonio de Mello Reis, então prefeito de Juiz de Fora, solicitando a retirada e transferência dos filmes da referida “saleta”, para um local mais adequado à sua conservação. Foi assim que, nesse mesmo ano, o acervo foi remanejado para São Paulo, onde permanece até hoje: “[…] Esses filmes foram encaminhados para São Paulo, pelo Sr. secretário de Cultura, Dr. Mauro Marsicano Ribeiro, onde sofrerão tratamento técnico, invertendo-os, inclusive, em material não perigoso”.
Passadas várias décadas dessa transferência, a saga se reinicia, com o recente incêndio ocorrido na Cinemateca Brasileira, que apagou parte importante da memória audiovisual do país. Tendo em vista o atual cenário caótico, faz-se urgente discutir possibilidades e alternativas para salvaguardar esse acervo da Carriço Film. Como uma estratégia de conscientização acerca da relevância histórico-cultural dessa produção cinematográfica, torna-se fundamental a ampla divulgação do acervo da empresa como um todo.
Nesse sentido, o Departamento de Acervo Técnico e Ações Culturais da Fundação Museu Mariano Procópio procedeu à realização de pesquisa na documentação institucional – como relatórios e outros documentos administrativos. Efetuou-se, ainda, o levantamento de itens nos diversos setores da instituição.
Em seguida, elaborou-se um inventário da coleção Carriço Film, depositada no Arquivo Histórico do Museu. Essa coleção, como outras, foi submetida às ações de preservação, investigação e comunicação, constitutivas do chamado “tripé da museologia”. Esse instrumento de busca, que visa a qualificar a coleção através da sistematização dos itens documentais e de pesquisas sobre seu contexto de produção, subsidia e favorece o atendimento às demandas internas e externas de pesquisa. Além disso, o acervo foi higienizado, acondicionado e digitalizado. Os dois últimos procedimentos, particularmente, também contribuem para a sua conservação, uma vez que minimizam o contato físico direto com os originais.
A pesquisa e a organização desse acervo também possibilitaram a sua requalificação e, consequentemente, maior divulgação ao público, através de publicação de textos, produção de live e vídeos. Acredita-se que essa iniciativa, ainda que não seja suficiente para transformar o atual cenário e superar os inúmeros desafios enfrentados diante do abandono da Cinemateca Brasileira, possa mobilizar, de alguma maneira, ações emergenciais para proteção do patrimônio audiovisual legado ao país pela Carriço Film. E não apenas isso: é urgente que se reafirme no Brasil a necessidade de políticas de Estado que garantam a preservação e o acesso a esse bem cultural pelas próximas gerações.
REFERÊNCIAS
FUNDAÇÃO MUSEU MARIANO PROCÓPIO – Departamento de Acervo Técnico e Ações Culturais – Arquivo Histórico. Inventário da Coleção Carriço Film. Juiz de Fora: Mapro, 2020. E-mail para solicitação de consulta: mapro.dep.acervo@pjf.mg.gov.br
MEDEIROS, Adriano. Cinejornalismo Brasileiro: uma visão através das lentes da Carriço Film. Juiz de Fora: Funalfa, 2008.
SIRIMARCO, MartHa. Carriço: o amigo do povo. Juiz de Fora: Funalfa, 2005.
VARGAS, Renata. A prática esportiva nas telas de João Carriço. Revista Trama: Arte, Cultura e Criatividade, Juiz de Fora, ano 3, n. 80, 28 fev. 2021. ISSN: 2764-0639. Disponível em:
https://bodoqueonline.art.blog/2021/02/28/a-pratica-esportiva-nas-telas-de-joao-carrico/. Acesso: 15/09/21.
Rosane Carmanini Ferraz é professora de História e historiadora. Trabalha no Museu Mariano Procópio e na Fundação Caed/UFJF. Possui graduação em História, especialização e mestrado em Ciência da Religião (PPCIR/UFJF) e doutorado em História (PPGHIS/UFJF).
Sérgio Augusto Vicente é Professor de História e historiador. Graduado, mestre e doutorando em História pelo PPGHIS/UFJF. Atualmente, trabalha no Museu Mariano Procópio – Juiz de Fora – MG. Dedica-se a pesquisas relativas ao campo da história social da cultura/literatura, sociabilidades, trajetórias e memórias.