Pronto, falei! (parte 1)

Opto por fazer uma disciplina livre escolha da Universidade, Filosofia e Ética das Organizações, a primeira em questão. Num segundo ato[1] decido escrever um trabalho nada convencional. Resolver pessoalizá-lo foi uma decisão não tão difícil nem tão pouco fácil. Continuemos. Logo no primeiro dia que fui à aula o professor não estava presente, procurei saber se tinha errado o número da sala (12) e esperei um pouco. O secretário do prédio estava do lado de fora. Era um desses dias que acirravam os protestos pró-governo em mais um momento de efervescência política. Depois de um tempo acabei vendo no meu e-mail que o professor havia cancelado para apoiar o momento crítico da democracia ameaçada[2]. Na saída o secretário me perguntou se encontrei o local. Expliquei o ocorrido, contei sobre o que li. Ele comentou que os professores faltam muito, na opinião dele não deveriam se ausentar e menos ainda por motivos políticos porque assim estão sendo corruptos também. Não sabia de quem se tratava, se era engajado politicamente ou coisa parecida. Preferi não opinar. O que se tira disso é que fomos todos mutuamente afetados. Os três. Quem são os responsáveis? Os políticos, os desmandos do poder, situação econômica, corrupção crônica, a mera opção de lutar pela democracia ou minha livre escolha? Não interessa muito aqui que talvez só eu vi a mensagem depois de deslocar do alojamento estudantil onde moro e compareci. Essa cadeia de pequenos acontecimentos foi resultado de muitas escolhas.

E se a liberdade se dá apenas como simulação? Todos presos em situações diversas se achando livres? Livres nas mesquinharias e banalidade nossa de cada dia? Tudo são hipóteses. No confronto comigo mesmo brinco de poder fazer o que quiser, tomo distância dos meus pensamentos e ações corriqueiras e num ato de suposta coragem decido por elas. Voltemos à história. Quando finalmente tenho a primeira aula sobre ética, esteticamente sinto que posso continuar ali. O professor tem traços que me agradam e já no primeiro encontro explanou que a gente (eu e outros alunos) poderia falar tudo que viesse à cabeça, qualquer coisa sem constrangimento nenhum, como num processo psicanalítico. Tive que esconder minha empolgação com aquilo, mas passou. Em seguida quis saber dos nossos interesses pela disciplina, falei do conceito de ética relativista que conheci superficialmente no meu curso (Jornalismo). Decidimos democraticamente prazos de prova, trabalho e uso do ar condicionado, melhor dizendo: o seu não uso! O pedido foi feito por mim e acatado pelos demais, o barulho do aparelho estava atrapalhando de nos escutar bem. Num outro dia ouço que nossas preferências estéticas também são éticas, ou algo próximo disso, quase falei que a boca é bonita e havia optado por ela. Mas poderia dizer essas coisas assim tão abertamente? Hesitei e me calei. Que tal escrever? Colocar-me em relação e arriscar assim? Por que não?

Somei mais uma motivação pra isso no livro “É Proibido Proibir”, achei no meu armário e o quis como referência. No capítulo 3 (O que Sartre andou pensando?) encontro a passagem: “Sartre diz que, se Adão existisse, não teria uma natureza já dada, com essas ou aquelas características. Se assim fosse, ele não teria nenhuma responsabilidade pelo seu ser. Nem mérito. ” (ALMEIDA, Fernando José de, 1988, p.44).

Bom, responsabilizo pelo dito. Numa outra aula o professor pontua sobre estética novamente, agora com cavanhaque. Continuei achando a boca muito atraente. Também comenta vez ou outra de desejos ocultos, até de homossexualismo. Ops! O correto seria homossexualidade. Pensei em corrigi-lo, mas também não o fiz. Fiquei encucado com aquilo, investiguei e descobri que ele tem formação em psicologia, então vi que

certamente sabia das diferenças, mas usa essa estratégia como provocação (homofóbica?!). Terá sido pra descobrir possíveis homossexuais ou vê a reação de quem está ligado nessas questões sutis de terminologias? Sei lá, nunca se sabe. O fato é que agora revelei certas coisas que passaram sim na minha mente. Entre todas as possibilidades alguma vingará. Pronto, tá escrito.

O que é a escrita? Os próprios usuários da linguagem são postos em dúvida. O que é a dúvida? Estamos toda hora em questão. O que é a questão? Aquela eterna do ser ou não ser? A liberdade possível? Numa outra disciplina optativa de Filosofia e Política I, que é um degrau a menos na escala de livre escolha, fiquei sabendo que podemos desestabilizar um tirano mostrando-o que ele não é livre[3]. Se o docente de ética quiser também pode apontar a minha não liberdade, que baguncei com as regras acadêmicas e serei mal avaliado. Ou ignorado. Ou qualquer coisa. O que importa nesse momento? Segundo Almeida (1988, p.35)

É no processo livre de escolha, a cada dia, de nossa essência que construímos a existência humana. Escolhemos a nossa essência ao procedermos à escolha do personagem que pretendemos ser. Essa escolha serve pra todos nós, mas serve, sobretudo para a humanidade toda. Deixamos nossa marca na história de toda a humanidade mesmo quando fazemos um ato bem no fundo da nossa morada interior.

O negócio é que aqui está minha decisão. A cada palavra. Com doses de autocríticas que não foram capazes de anulá-las. No fim das contas só quis escrever algo que fosse meu. Mas diante do pensamento que diz “De que ideia sou realmente autor? Há sentido em usar este paradigma ainda hoje em dia? ” (não vou revelar a fonte de propósito) repenso sobre o assunto e sinto certo alívio pela originalidade mítica, mística.

Para falar um pouco da atitude filosófica recorri ao primeiro livro de um colega de quarto que me veio aos olhos e peguei para mais uma sessão de citações. O título é A utilidade do inútil: um manifesto. Lá pelas tantas encontrei um diálogo entre sábios. Huizi disse a Zhaungzi: “Suas palavras são inúteis. ” Zhaungzi respondeu: “Para conhecer o que é útil é preciso saber o que é inútil. ” (ORDINE, Nuccio, 2016, p.94 e 95). Na página seguinte tem o relato do caso de um japonês que em seu Livro de Chá (1996) dedica seu amor às flores:

“Ao oferecer a primeira guirlanda à sua amada, o homem primitivo transcendeu o bruto. Dessa forma humanizou-se e se alçou acima das rudes necessidades da natureza. Penetrou no reino da arte quando percebeu o sutil uso do inútil. ”

E só fiz tudo que fiz, pensei o que pensei e escrevi o que escrevi por uma escolha estética. A boca[4]. O resto é liberdade, erros, inutilidades e falta do que dizer. Parafraseando Sartre encerro com a pergunta: a liberdade precede a ética?


Adão Ferreira Filho atualmente mora em São João Evangelista-MG e acredita no potencial transformador da arte. Ainda que as cores dos últimos meses tendem a nos ofuscar, podemos fazer resistência diante dos mares de ignorância e estupidez. Prefiro ser breve e deixar que meus escritos falem por mim. 


“…liberdade caça jeito.”  
Manoel de barros.


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