SUMIÇO DOCUMENTAL

O Santana ficou estacionado no meio da rua mais íngreme do bairro. A tintura preta foi deixada derretendo a chuva e os pneus debruçados em pedras para garantir que o carro não desceria embalado até a praça. Na casa da frente morava seu Aldenor. Tinha recém falecido, ninguém da redondeza sabia de qual causa. Só notaram sua ausência porque o veículo, sempre um brinco, tinha sido largado a uma tempestade de granizo. Foi dona Helena quem mais se preocupou e, assim que pôde, bateu na casa do dono do Santana atingido. Vovô faleceu e mamãe não está, foi o que disse Miguel com um carrinho nas mãos atrás do portão. 

Ana Maria na verdade estava em casa, de forma que pediu ao filho para mentir. Não queria falar do Santana e muito menos do pai. Tinha decidido, duas semanas depois do velório, que venderia o carro sem que nenhum vizinho soubesse. Quando percebessem, o novo proprietário já estaria fazendo o motor roncar para longe dali. Todos na rua seriam contra, era o que ela achava, porque apesar de seu Aldenor não ter sido querido, seu carro era uma relíquia. Algumas mulheres espiavam pelo vidro o painel cheio de funcionalidades, os rapazes discutiam sobre os faróis originais e as visitas se demoravam na calçada admirando a tintura perfeitamente preservada. 

À filha do dono, aquilo era entulho. Ela não sabia dirigir e nem queria aprender, muito menos naquele veículo difícil de estacionar. Ana Maria tinha acolhido o pai depois do falecimento da mãe e, sem escolha, deixou vir também o Santana. Seu Aldenor não comia uma boa parte do cardápio dos almoços da casa, não arrumava a própria cama e assistia televisão em um volume ensurdecedor. Nas noites frias, o avô levava Miguel para passear no banco do carona e passou a ensinar a ele o que significava um motor de quatro cilindros e o privilégio de um câmbio manual. Enquanto a filha tentava se fazer ouvida pelo pai, o velho se atentava para cada reclamação do seu carro, dizendo a qualquer rangido no painel um doce o que foi, meu garoto? 

Quando virou a terceira semana de poeira na lataria, Ana Maria decidiu organizar a venda. Pediu ao filho para ajudar a retirar as folhas do para-brisa e o menino, não contente, aspirou os bancos e lavou os vidros. O vizinho da casa ao fim da rua subia a ladeira quando viu a criança passando pretinho nos pneus do Santana. Vocês não vão vender ele, não, né, menino? Miguel não se deu ao trabalho de levantar-se. Não, senhor. Era o que a mãe tinha instruído a dizer. 

Com as fotos para o anúncio já feitas, foram procurar o documento do Santana. Não estava no porta-luvas. Nem na carteira ou dentro de um livro ou nos bolsos das calças do seu Aldenor. Ana Maria passou dias procurando. Chegava do trabalho, prendia os cabelos em um coque e se demorava na missão. Nem São Longuinho deu jeito, ficou devendo o achado e ela, os três pulinhos. No domingo, confidenciou às amigas o que pretendia fazer e também o sumiço do documento. Por que você simplesmente não tira outro? A mais rica perguntou. Ana negou. Não está no meu nome, é caro e eu sei que está aqui, ela repetiu em maiúsculas, só preciso encontrá-lo

Os meses se arrastaram na procura. Aos poucos, a notícia do sumiço ia se espalhando pela vizinhança. Cada um tinha uma opinião. O pastor da Igreja de cima, valha-me Senhor, se encolhia inteiro para dizer que, quem sabe, não é seu Aldenor escondendo este documento para impedir o que ele mais temia em vida? A velha da mercearia desconfiava ser picuinha de algum vizinho interesseiro. Ela sugeriu que, se aquela casa tivesse alguma câmera, teria filmado o “sumiço documental”, ela dizia ao marido fazendo as aspas com os dedos. Ana começou a levar o incômodo para sua psicóloga e uma nova teoria foi anotada no prontuário da profissional: a paciente está se sabotando e só encontrará o que precisa quando tiver atravessado seu luto.

Em algum momento, Ana Maria cedeu e começou a ouvir as sugestões das pessoas. Estava em parte cansada de procurar, mas também começara a acreditar que alguém, por Deus, alguém! estaria certo. Numa noite de domingo, enquanto ela agendava por telefone o culto que fariam para libertar seu Aldenor da casa, Miguel bocejou e disse que ia dormir. Antes de se deitar, esticou o braço embaixo do colchão e foi tateando até encontrar o furo na costura onde estava escondido o documento. Correu até a janela e, mirando as estrelas, cochichou tudo certo aqui embaixo, vovô. 


Fernanda Zeloschi é estudante de Psicologia, escritora teimosa e acredita nas faíscas do afeto através do @fazerafetar


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