O PÉ DO SEU GONÇALVES

O dia já amanhecera frio; o ar cálido dominava a sombria prenunciação do que aconteceria. O ardor divino começou no banho: Seu Gonçalves ligou o chuveiro e esperou uns minutos até que a água esquentasse – pensara em trocar a resistência do aparelho e sempre adiava o compromisso com a incrédula sensação de inutilidade. Gonçalves era homem fiel, cumpria tudo que prometia, mas sempre se esquecia de si; esquecera até de se alimentar por ter ficado horas ajudando uma amiga. Puxou a esponja enchendo-a com sabão, esfregou toda a parte de cima do corpo quando o susto veio, ficou encarando os dedos dos pés, ali, desaparecendo diante dos seus olhos. Saltou para fora do banheiro tão ligeiramente que nem pensou em desligar o registro. Foi se secando, encarando o sumiço de parte do seu pé. 

– Ué, cadê? 

Era vago, lento, mas ia desaparecendo; foi trabalhar. Por precaução, colocou uma calça e um tênis. Não gostava de médico; em sua cabeça, “logo, logo passa”. Foi para a obra. 

– E aí, Seu Gonçalves, tudo bem? Tô tentando montar um guarda-roupa ali em casa… é enorme, pode me ajudar? 

– Poxa, vai atrasar a entrega dessa aqui, mas vamo lá!

Esse era o seu Gonçalves, cumpria tudo que prometia, mas sempre se esquecia de si. Logo se esqueceu do pé, que ia desaparecendo aos poucos. Fim do dia, foi para casa, tomou o banho, parecia não se abalar com o sumiço do seu pé que ia subindo aos tornozelos. Seria o banho quente? Talvez não, mas decidiu tomar banho gelado para garantir. Houve batidas na porta, correu para o quarto, cobriu os pés. 

– Olá, Gonçalves!  

– Oi Maria, tudo bem? – Ele tinha aquele sorriso sem graça no rosto, não de desespero, mas de preocupação. 

– Tá de toalha e meia? Por quê? 

– Ah… Humnn… Nada. – Pensou. – Vem Entra! 

Ela se acomodou na cozinha; já era de casa, a visita que hora ou outra aparecia para pedir favor ou uma noite de amor. Sempre que ela chegava, ele ia preparar um café, pegava o jarro de alumínio e punha a água para ferver. A companhia era boa; os assuntos muitas vezes fluíam com água de torneira, e às vezes não sobrava tempo para palavras, ela o agarrava e arrastava-o para o quarto. Hoje, havia a dúvida. O que ela queria? Sexo, favor ou conversa? Os três? Tudo ao mesmo tempo?

Ilustração por Jhonata Santana

Não demorou muito para que ela o puxasse pelo laço da toalha, trouxe-o para perto do seu corpo, com olhos em desejo revelador. 

– Vem vamos para o quarto? 

E ele a seguiu. Obedecendo a todos os comandos que lhe eram dados, ela se jogou na cama e ele parou em sua frente. Deixou a toalha cair. 

– Tira essa meia e pula aqui para gente brincar! – Esse era o seu Gonçalves, cumpria tudo que prometia, mas sempre se esquecia de si; dessa vez não. 

– bom… A meia… Não posso ficar com ela? 

– Mas de jeito nenhum, me dá uma cosquinha danada. Tira essa meia ou nada tem hoje. 

– Mas… – Foi interrompido. 

– Mas nada! De meia eu não transo! – Cruzou os braços. 

– E sem meia eu não fico! – Também cruzou os braços e ergueu a cabeça. 

Ela saiu ao esperneio, vestiu sua roupa e foi embora. Gonçalves sentou na cama, nu da cabeça aos joelhos, tirou a meia e vestiu uma samba canção. Deitou e dormiu. Logo de manhã, levantou, abriu a geladeira pegou o leite e pôs para ferver, pegou a margarina, café, e duas frutas para comer. Ainda não olhara seus pés, estava com medo, receoso, a duvida se tomava banho ou não rondava seus pensamentos. O dia estava esquentando, o sol ardia através da janela da sala, ele suava. Ligou o ventilador, mas nada, o vento quente batia em seu corpo e só lhe aborrecia foi até a porta e se assustou: onde estavam suas mãos? Começou a enlouquecer. Entrou correndo no banheiro e se olhou no espelho. Ele não estava lá. Tudo que viu foi o reflexo vazio de sua persona ausente. Logo de manhã, alguém na sua porta o chamava.  

– Bom dia, Seu Gonçalves! Pode me emprestar o pé de cabra? 

– Claro, Carlos! Tá do lado da porta, só entrar e pegar!  

Esse era o seu Gonçalves: cumpria tudo que prometia, mas sempre se esquecia de si.


Jhonata Santana, nascido na área litorânea de São Paulo (baixada santista). Começou a escrever cedo, por volta dos 14 anos, com pequenos contos de mistérios. Hoje tem publicado uma antologia de contos eróticos e caminhando para a segunda publicação, um romance de mistério e drama policial que trata sobre depressão e suicídio.


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