A VIOLÊNCIA NA MORAL DO ESPETÁCULO

Um programa de TV não é uma cena de uma circunstância,
mas um “modelo”, a saber, uma imagem de um conceito de uma cena.
Vilém Flusser

Todo especta-dor é um covarde ou um traidor.
Frantz Fanon, com hifenização nossa.

Para muitos de nós, é corriqueiro ver programas televisivos ditos jornalísticos com transmissões de toda sorte de notícias envolvendo crimes ou tragédias que são quase sempre acompanhadas dos comentários acalorados do apresentador – e de imagens prioritariamente impactantes, para não dizer explícitas – ocupando horários nobres da grade de emissoras abertas. Porém, enxergar tal agenda televisiva como mais uma faceta necessária da dinâmica nos meios abertos de comunicação é se abster de considerar que há muito tempo assistir um programa de TV deixou de ser uma atividade descomprometida. Na verdade, somente num tipo específico de sociedade esse conceito de comunicar eventos da ordem da cotidiana violência com tanta resolução e engajamento parecerá algo necessário. E talvez essa sociedade possa ser considerada patológica.

Como clareza é gentileza, afirmaremos logo de entrada o problema que enfrentamos: de alguma forma, programas de TV com repertório altíssimo de violência tornaram-se modelo comum de transmissão por todo lugar. Não se trata mais da ficção da violência ou de formas contemporâneas do trágico: é mesmo a realidade pornográfica através da tela, uma espetacularização moralmente adequada ao consumo da violência.

Primeiramente, falar de violência ou tomar uma expressão estética como sendo violenta não é o tipo de coisa que se diz sem maiores detalhamentos. Se digo que há algo em questão quando tratamos das imagens de violência na tela é porque essa constituição não é feita simplesmente de representações e comunicações moralmente imparciais. O que existe, na verdade, é uma transmutação em que a própria representação se torna uma violência. Uma inversão tácita, mas nem tanto.

Uma inversão como essa pode ser observada segundo a divisão feita por Zizek[1] entre violência objetiva e violência subjetiva: enquanto esta última é a perspectiva da violência como algo que irrompe uma certa normalidade, como um excesso percebido sob o pano de fundo da não-violência, a violência objetiva é aquela condensada na estrutura dos modos de reprodução material da vida, estrutura pela qual a própria percepção da violência (subjetiva) é adequada. A dimensão subjetiva da violência está em sua capacidade de nos atrair, de mobilizar nossos afetos em torno de um acontecimento destacável. No caso da violência objetiva, a forma tátil da violência encontra-se em suspensão: ela está no contrapé da cena, isto é, funcionando como um espectro que assegura que a violência será percebida desta maneira ou de outra.

No caso dos programas de TV aqui referidos, a valência subjetiva dos acontecimentos retratados parece obter sua legitimidade por si só. Em nome da veracidade dos fatos, do acompanhamento em tempo real (e aproximado) e do esforço de apuração assistimos às transmissões mais bárbaras em horários privilegiados para o telespectador. Nos deparamos com uma espécie de entretenimento caótico num regime especular em que o sofrimento alheio já não nos causa, a não ser através de afetações plásticas, esvaziadas da densidade simbólica que uma dor evoca. Temos diante da tela essa figura de olhar capitalizado chamado especta-dor.

Não seria possível refletirmos essa condição sem nos darmos conta que nem todo tipo de reação é um gesto legítimo de reconhecimento. O que temos é uma inversão tão profunda que expressar sentimento de pena já não é mais o dado que nos informa sobre nosso senso de humanidade – seja lá o que esse termo vem a significar atualmente. É como se fôssemos afetados num outro flow, no qual a neutralidade se disfarça como reatividade vazia, desimplicada, assim como o mundo estático das telas. Como nos lembra Márcia Tiburi[2], se a tela é mais do que simplesmente uma estética, mas uma prótese existencial, o telespectador é alguém que introjetou a tela em sua capacidade de ver. Ele é um espectador da cena das telas. Talvez possamos que concordar com a tese de que vivemos num estado de exceção da imagem[3], mas com o acréscimo de que é a violência em seu modo de perlocução mais brutal que garante essa zona de exceção. Diante desse quadro, tudo parece tender à confusão, e os pontos entre o estético e o político se tornam mais indiscerníveis do que gostaríamos. Pois um retrato como esse revela não somente a neutralização que a ordem do espetáculo nos provoca com suas tecnologias de abalo da percepção. Mas também a constatação indesejada de que nosso olhar há muito tempo fora capitalizado.


[1] Zizek, S. Violência: seis reflexões laterais, 2014.

[2] Tiburi, M. Olho de vidro: a televisão e o estado de exceção da imagem, 2011.

[3] Idem.


Micael Correia tem 23 anos e é um escritor não-autorizado. Tem experiência em Psicologia Clínica e se interessa pelas áreas de Psicanálise, Filosofia e cultura popular.


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