Nestes dias o Mundo se reuniu para discutir o planeta Terra. Curiosamente, Terra e mundo parecem estar de lados opostos. Homens aqui, natureza lá. O mundo inclui a Terra, mas sabemos que não haveria mundo sem ela. A invenção do mundo é recente e remete à cultura, ao homem e seus feitos; raramente colocamos a natureza como mundo, ao contrário, a natureza é Terra, é Gaia, é Medéia. A separação homem-natureza permite ao homem ser o centro da terra e do mundo; faz-nos flutuar sobre tudo o que há, dispondo e significando o fora, o alheio, o exterior, ao mesmo tempo em que nos permite preservar um lugar privilegiado de observação e ação: separados e autônomos, somos sujeitos na terra e no mundo. Jamais Terra, jamais mundo. No universo, somos planeta entre muitos outros azuis, vermelhos ou cinzas. A cisão fundamental homem-natureza organizou nossa racionalidade e nos outorgou o título de seres racionais, de homo sapiens.
O outro nome que damos à Terra é Globo, como se a forma esférica fosse mais importante que o relevo que pisamos. O globo, na verdade, permite construir uma relação equidistante ou matemática de todas as vidas em relação a um centro, também matemático. O globo interessa por esse cálculo, que por sua vez é o procedimento que serve tanto para calcular os deslocamentos dos homens ao redor da Terra quanto das suas mercadorias. Seres viajam de um lugar a outro fazendo geodésicas na sua superfície; encomendas também as fazem. As rotas fazem marcas imaginárias em um globo imaginado.
A esfera como tal – diz Peter Sloterdijk – sempre fascinou e foi palavra sábia. Dos geômetras em diante, a esfera sobe e se alça como a forma própria da perfeição, da totalidade, da unidade, do mundo ou do cosmos. Tudo que deve constituir uma singularidade encontra na esfera um rátio, uma racionalidade centrada, onde qualquer caracterização é remetida de forma equidistante ao centro substancial; a razão é neutra, é verdade, está despida das variações do espírito; o homem é universal, o tempo e o espaço, dois a priori. Cientes do poder da escrita e do registro neutro, evoluímos procurando o verdadeiro sentido para nos situar de forma equidistante aos fatos que povoam o mundo.
Nós, simples peripatéticos, deambulamos na superfície – também apropriada pelos geômetras – do mundo através das rotas da cidade e do espírito. Ruas e avenidas nos ensinam as formas de deslocamento na superfície terrestre. Livros e filmes nos conduzem pelas geodésicas do tempo da razão. Os outros, igual que nós, flutuam na diversidade das cópias imperfeitas do rátio civilizatório que nos identifica.
Esta superfície – que também chamamos de solo – está exatamente embaixo dos nossos pés e foi por ela que chegamos a provar que estamos sobre a crosta do globo. Os experimentos de Eratóstenes deram uma formulação concreta ao raio da esfera terrestre e a exatidão dos seus cálculos inaugurou um ponto de observação para tudo que há no solo e em torno dele. Nem os recentes terraplanistas tiveram força intelectual para produzir uma nova razão, desta vez não esférica. A perfeição da esfera coloca todos os pontos da Terra de forma equidistante ao centro substancial. Seu núcleo se estabelece pela intenção universalizante; dos Direitos Humanos aos Direitos da Terra, se trata de um raio único para todos os seres e para todos os propósitos. Mas, o rátio é sempre referido a algo, a um sistema de referencia, de pensamento. Talvez por isso a síntese do globo reúna a totalidade da esfera em relação a um centro equidistante: há uma razão, e como tal, os seres da razão que habitam o planeta se reúnem constantemente para definir o centro, o raio e, consequentemente, o que está dentro ou fora da totalidade esférica.
Recentemente, Bruno Latour comentou sobre os bem intencionados seres racionais que pretendem deixar a esfera para ver de longe como ela sucumbe à crise planetária, tal qual se fez um tempo atrás quando se afastou o sujeito do seu mundo-objeto. Os requintes midiáticos de turismo espacial não são suficientes para eliminar a compreensão de que, perante a crise, alguns afortunados – com suas bilionárias fortunas – possam ver desde cima os infortúnios dos mais pobres, na crosta de um globo que se deteriora irremediavelmente.
Dos porões dos laboratórios (e daqueles que os financiam) sabemos muito pouco. De fato, foi pela mídia jornalística e não nos congressos científicos que ficamos sabendo dos embriões humanos produzidos a partir de células tronco de macacos e humanos. Portanto, não devemos estranhar a possibilidade real de estarem sendo desenvolvidas clandestinamente formas de sobrevivência de longo prazo fora da crosta terrestre e também não devemos estranhar que essas formas técnicas possam ser utilizadas para fugir de um planeta em crise. A alarmante situação da crosta terrestre parece não encontrar saída nela mesma e por tal motivo, muitos afortunados querem se alinhar a um modelo político e econômico que transite entre um discurso de cuidados planetários ao mesmo tempo em que viabilizam opções de sobrevivência para salvaguardar suas particulares versões da espécie humana. A Terra está sob crescente risco de colapso ambiental; digamos, risco de que colapse aquilo que está fora, afetando-nos irremediavelmente. O colapso ambiental é o colapso da Terra. Ela é hoje elevada à condição de organismo para nos fazer ver que se defende do homo sapiens e de sua vertiginosa corrida à plenitude, como sujeito contaminante que ainda flutua sobre ela. A preocupação com o colapso da Terra nos faz articular toda a racionalidade planetária para pensar o impensável, para promover o impossível com o intuito de criar uma deriva filogenética que não seja nociva para a Terra.
Porém, a degradação planetária não define seu rátio exclusivamente sobre a crosta terrestre; o raio que define o mundo sequer repousa sobre a ideia de uma natureza que equidista do substancial ser humano que a gera, pois ao mesmo tempo, esse humano a corrompe. O mundo – essa invenção recente que destaca as virtudes de um sujeito que flutua sobre a crosta danificada sem assumir nenhuma responsabilidade – inclui a Terra e também se corrói, contaminando as relações e as mentes. A degradação planetária também eleva a temperatura dos conflitos, provoca situações extremas de vida e morte, oferecendo à razão opções necropolíticas tão justificáveis como foram Auschwitz e Hiroshima para as outrora injustificáveis versões da racionalidade humana. Além da degradação ambiental, o mundo que institui nossa sociedade e cultura vive processos de degradação psíquica e social. Por um lado, as sínteses tecnológicas e os algoritmos de recomendações substituem nosso contato com o real provocando os meios propícios para a governança algorítmica, por outro, o cenário se complica à luz da manipulação comercial do desejo, das identidades e do ódio à alteridade.
Na vida coletiva, negar o outro nunca foi tão lucrativo como hoje; as fake news não são o puro resultado do confronto entre pensamento moderno e pós-moderno, nem uma luta entre diferentes bolhas de narrativas próprias. A própria noção de pós-verdade atualizou algo similar ao que há muito tempo já fora denunciado e atacado na figura do relativismo. Mas, se nunca fomos modernos, como diz Latour, também nunca a verdade foi um absoluto. Ela sempre se ergueu como o instrumento de poder dos donos das meta-narrativas. Ao atualizar o poder político das narrativas menores no contexto comercial das bolhas virtuais, a virada pós-moderna mostrou que o diferente ainda incomoda; mostrou como é simples produzir ódio ao diferente, e finalmente, mostrou como é lucrativo o ódio. O deterioro social se produz recolhendo as identidades fragmentadas e confrontando-as em uma economia tanatológica, porque de certa forma ela é uma das expressões econômicas da necropolítica contemporânea.
Na dimensão psíquica, Bernard Stiegler nos alerta sobre a proletarização cognitiva, um fenômeno que se ergue sobre a incapacidade de criar opções de vida perante a voluminosa oferta de modos de vida de prateleira que oferece o capitalismo. Sem produzir a vida, só escolhemos as formas de vida que nos oferecem. A velocidade de produção técnica da economia da cultura antecipa o desejo sem dar chances para que a dinâmica social reflita e absorva as transformações operadas pela técnica no conjunto de vidas do corpo social. Com isso, estamos sempre à deriva, sendo conduzidos pelas novas versões de tecnologias que operam na camada da libido, tornando-nos verdadeiros seres sem condição coletiva estável. Parece-nos que todos nossos desejos já são conhecidos pelos produtores da tecnologia e confiamos cega e ingenuamente nos objetos que nos disponibilizam. Sem pensar, sentimos e agimos intuitivamente em um campo onde sentir e intuir está completamente mapeado, impedindo que nosso cérebro faça os exercícios neuronais necessários para reconhecer a manipulação capitalista. Chegamos ao ponto de consolidar uma subjetividade obediente e limitada que acaba defendendo como verdadeiras as únicas formas de vida nas quais somos envolvidos. Essa dinâmica atrofia o desejo, a mente e produz o rebanho, o gado, enquanto os pastores da identidade e da manipulação do desejo enchem seus bolsos de dinheiro. Cada membro do rebanho tem seu pastor e cada pastor, seus interesses. Atrofiado, o rebanho serve de matéria prima para o lucro, a identidade se transforma em uma mercadoria e, como sempre acontece no capitalismo darwiniano, sobrevivem os mais aptos: novamente a necropolítica se encarrega de dar condições para extrair lucro até do último suspiro do homem obediente: o ódio e a morte se tornam espetáculo.
De tanta degradação pairando na Terra, a crosta terrestre não é mais um lugar seguro.
De tanta manipulação política e economia do desejo, o mundo que reside sobre essa crosta também não é.
Será que o globo pode promover um novo e seguro rátio, uma nova razão salvadora?
Poderíamos dizer que alguns pensam que sim, desde que exista tempo. E mais ainda, eles pensam que são uns poucos os que se devem salvar da catástrofe planetária.
O desenvolvimento tecnológico que avança nos porões dos laboratórios sempre está disposto a caminhar na direção do capitalismo. Se agora se trata de uns poucos afortunados que podem flutuar por longos períodos de tempo em uma órbita segura – e ainda assistir de camarote a crise planetária – sem dúvida financiamentos serão direcionados para isso. A mesma velocidade da máquina de morte da segunda guerra pode ressurgir para acelerar a construção das naves dos afortunados. Mesmo assim, a questão continua a ser se haverá tempo suficiente, pois na singela vida dos peripatéticos humanos, os riscos da degradação planetária podem obriga-los a tomar medidas extremas, e sabemos que uma multidão faminta, raivosa e decidida, não é tão controlável assim, de modo que antes das privilegiadas naves sair voando a ocupar a arquibancada orbital da tragédia humana, os irrelevantes, os famintos, os excluídos, os obedientes, podem se deslocar sem rumo, derrubando tudo que estiver ao seu passo; inclusive os afortunados e suas tecnologias de sobrevivência podem ser pisoteados pela multidão desorientada.
Neste trágico contexto, parece que nenhum lugar é seguro, nenhum tempo é suficiente e nenhum homem quer reconhecer a situação de modo a evitar o pânico que pode influenciar a multidão desorientada. Talvez a mais lúcida de todas as interpretações desse momento seja da gigante Greta Thungber, que sem meias palavras denuncia a surdez dos governantes e a displicência com que eles tratam nosso degradado planeta. Para ela, falsas promessas fazem parte do roteiro do G20 e Bruno Latour já nos alertou para esse engodo: nem humanismo de esquerda nem liberalismo de direita. Enredados nessa disputa binária, devemos superar as dicotomias e caminhar para uma política terrana que se distancie radicalmente do antropocentrismo humanista e liberal que até hoje não conseguiu reunir aquilo que com tanto orgulho separou séculos atrás. No horizonte da fuga promovida pelos afortunados do capitalismo, com menos possibilidades de salvar a espécie se anuncia o novo homem do transumanismo. O homem melhorado parece só aprimorar aquilo que o capitalismo considera necessário para o próximo passo evolutivo. Seja qual for o pós-homem projetado e produzido pelo transumanismo, o tempo é mais curto ainda, pois os problemas pipocam por todos os lados e logo os corpos chegarão aos porões dos laboratórios, e quem sabe, essa multidão de corpos ditos obsoletos e desorientados erguerá a estupidez como a nova condição evolutiva para consagrar a necropolítica como a única e necessária política de fim do mundo como conhecemos hoje. Junto com o pós-humano deverá se erguer outro mundo, o pós-mundo desse pós-humano, a partir de uma estirpe engajada na necropolítica que irá usar eficientemente uma razão bastante flutuante e manipulável para produzir a evoluída e necessária condição de atrofia mental que abrirá passo à nova geração.
Aqui no Brasil sabemos como isso faz parte de um verdadeiro projeto político. Orgulhoso da sua estupidez, nosso representante maior pretende erguê-la como antidoto a uma razão planetária corroída por uma globalização predatória tentando disfarças os interesses do seu clã sobre a Amazónia; percorre as ruas da Itália para instituir uma imagem usável nos círculos toscos das esferas identitárias do seu clã, que espera orgulhosa a nova montagem que justifica seus atos. Orgulhosos da estupidez, alguns já se exercitam em ginásticas físicas, dando a entender que perante o fracasso do rátio humanista é necessário criar outra esfera que abrigue outro mundo, o qual será erguido controlando tudo e descartando muitos modos de existência alternativa para assim afirmar um único e hegemônico modo de vida; um modo de vida que insiste em dominar tudo: homens e natureza; insistem em um modo de vida onde o consumo é ingenuamente elevado como valor fundamental do sujeito livre, mas que materialmente é nada mais do que veículo e expressão do seu próprio processo de extinção. Mal sabem esses guerreiros que caminham orgulhosamente para uma morte sem honra.
José Aravena Reyes é natural de Santiago de Chile. Músico popular e canta-autor na época, veio para o Brasil a cursar pós-graduação em Engenharia Oceânica. Professor Titular da Faculdade de Engenharia desde 2018, fez pós-doutorado em Filosofia da Técnica e da Tecnologia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Atualmente ministra aulas de Engenharia e Sociedade e Gerenciamento de Projetos na UFJF. Na sua vida pessoal, é discotecário de músicas do mundo. Membro do grupo de Maracatú Estrela na Mata, divide suas pesquisas de Filosofia da Tecnologia com suas outras pesquisas musicais em discos de vinil do mundo que utiliza em suas mixagens e produções autorais de música eletrônica.