A Pedra [a partir de uma frase de Wolfe em um jantar na Bourgogne] Tentar outra vez Tentar até exaurir a parede da veia que pulsa isto é Que insiste em estar viva E errar melhor Errar copiosamente bem Porque o homem é um animal que tropeça Porque a pedra não é a exceção, senão a regra Porque o poema não é um acerto, senão um tropeço executado em passo de dança
Súbito [limpar a sombra dos olhos é mais simples em Auvergne] Desabotoar a manhã Inaugurar a poça Colher a neblina Deixar arder - os dedos - no ar azul Capturar o oxigênio como se a última vez Nomear apenas as folhas mortas da amoreira Retificar a antiguidade da pedra E a mudez do bicho - no pátio - Traduzir o canibalismo das aranhas E o dialeto que se faz, quando em brasa, a madeira lamenta Perceber Súbito Que a saudade é o único direito inalienável E que te faz falta o grão da primeira neve Que cessa antes mesmo do primeiro pouso
Noturno com telescópio [Bretagne, no outono] Veja bem como a figura do santo esfarela Ao traço do primeiro mapa cosmológico E logo retesa a chaga Em tez imaculada Própria da tensão Que se ensaia Entre credulidade e incerteza Própria De quem acompanha a queda do último argonauta e a calvície da última árvore Própria a quem declara Ser chegada a hora do sossego Própria de quem toca a ferida aberta Na palma da mão De Deus Própria De qualquer Deus.
Ne m'appelle jamais Honey Boo Boo [tarde na Normandia] A menina ruiva esculpe castelos instantâneos a cada recuo do mar. Dois pra lá, dois pra cá. É uma dança, a menina a onda e o granulado ardente do saibro que poderia bem ser testemunho da pedra em que São Tomé recostou-se após roçar a ferida aberta de Deus. Um senhor beberica pela vigésima primeira vez e sem vontade a mesma taça de vinho apenas para afastar os garçons que miram com voracidade de urubu. Dedica-se, no espaço entre cada gole, a milimetrar o crescimento das cutículas. Uma senhora de setenta e tantos anos separa em círculos concêntricos a clara de dois ovos fritos. Come somente os aros ímpares da massa branca e as gemas, as oferece a um cachorro. Um policial recostado em uma viatura retira todas as balas de sua arma, as deposita em sua perna e as toca suavemente com a ponta do indicador, nomeando-lhes atentamente. No vão entre cada projétil sabe que deve rezar uma ave-maria ou cantarolar billie jean de michael jackson. Um pintor de paisagens dá ao céu um vermelho que não existe. Por quatro minutos encara a tela e suspira. Em um normando muito antigo dá-se por vencido, ‘de irreal basta o mundo’ e cobre o rubro com o cinza mais feio. Dizem que todo ano ao menos um bicho é pego pelo solo lodoso de Saint Michel e que este é o preço que o fantasma do monge cobra para manter limpa a efígie do santo. À beira da estrada duas mocinhas de mãos dadas aguardam - solenes - um carro que as possa levar a qualquer lugar próximo de casa. Já não é época da apanha das maçãs e nos pomares apenas as insistentes [les oubliés]. Eles, os homens, como bem o fazem, ignoram que todo fruto, sobretudo os tortos, absolutamente os tortos, sobejam em lucidez.
Le Pendu [antigo campo de batalha na Aquitânia] ali as árvores, antigas e truculentas árvores, reconhecem - sem detença, e de memória - o peso dos homens
Dans une terre grasse et pleine d’escargots
ROADTRIP [POEMAS ESCREVINHADOS À BEIRA DA ESTRADA] é composto por escritos desenvolvidos como cartografia afetiva do autor durante algumas viagens de carro pelo interior da França (2021).
Henrique Grimaldi Figueredo é Doutorando em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP, Brasil) e pesquisador visitante na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS, França). Atua como editor executivo do periódico Todas as Artes, sediado no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (UPorto, Portugal).