DIAS DE CÃO

Enquanto finalizo os preparos do almoço, Zinha cochila ao lado da geladeira. Consigo ouvir suas respirações mesmo com o feijão borbulhando enfurecido no fogão. Não sei bem se o que a desperta é o cheiro de carne recém cozida ou o barulho das tampas das panelas anunciando o meio do dia.

Ela se põe nas quatro patas quase peladas e orienta seu caminhar pela minha voz. Seu pêlo caiu há quase um ano, quando um fungo tornou preta sua pele e a fez usar os caninos para tentar solucionar as coceiras. Numa noite foi impossível dormir porque o som de suas mordiscadas rápidas e ritmadas nas patas martelavam minha cabeça. Seu cobertor parecia feito de espinhos. 

Venha, cachorrinha, hora de comer. Ela se senta ao meu lado e fareja o ar quente do almoço. Entre uma garfada e outra, atiro a ela um pedaço de gordura. Ela abaixa a cabeça e mira o chão com o focinho, tentando se guiar pelo aroma temperado. O petisco finalmente encontra sua boca, mas é engolido sem deixar rastro de gosto, sem sequer fingir ter sido mastigado.

Quando me levanto para servir a ração de Zinha, sinto seu caminhar desengonçado atrás de mim, girando o corpo enrugado e tentando não me perder em seus desequilíbrios. Ela enfia o focinho no pote antes que toque o chão. Se engasga uma, duas vezes. Eu puxo um banquinho e me sento longe do alcance dos giros de seu rabo. Me preparo para caso precise realizar alguma manobra de socorro, mas não acontece. Seria a terceira vez na semana.  

A louça se acumula na pia para mais tarde. Escovo os dentes e me deito na cama. Zinha tenta se lançar ao colchão, batendo a cabeça na estrutura de madeira e sendo arremessada de volta ao piso. Para pegá-la no colo, preciso colocar as luvas que já ficam penduradas na cabeceira. Espero um pouco até decidir ajudá-la. Quando nos encostamos, sinto seus ossos salientes e ignoro seu rosnado rouco. Os dentes que ainda não desistiram dela tentam cravar em meu polegar por baixo das camadas de tecido, mas se soltam quando suas patinhas tocam a cama. Enquanto ajeito os travesseiros, ela me encara lambendo os beiços.

O que foi? Sofia não está mais aqui para tratá-la com regalias. Foi para Londres viver nos pubs. Nos dias em que a chuva se espreme nas telhas e inunda a varanda com goteiras, Zinha cola o corpo na porta de entrada e tenta pegar no sono. Poderia esperar até às dez da noite para ouvir a chave girando na fechadura e comemorar a chegada das canelas finas e coxas nuas de sua dona. Agora, sempre digo a ela que ninguém virá. Desconfio que Zinha esteja começando a acreditar.

Naquela época, eram raras as vezes em que trocávamos olhares. Quando eu tinha algum tempo entre as fornadas de bolo durante o dia e a procurava, ela era um borrão no quintal, cortando o vento na direção de algum pássaro pousado na grama. Tal qual um cão de caça. Trazia para o sofá algum animal morto no entardecer e Sofia escondia a cara de nojo para acariciá-la em agradecimento. As duas entravam para o box e tomavam banho juntas — só faltava usar pijama essa cadela. Depois que ficamos só nós duas, Zinha passou a direcionar a mim os olhos se manchando de branco. Parece que ficou cega de propósito — arrumou um jeito de não me ver.

Não faz nenhuma sala: logo desvia a atenção, enrosca o corpo ao lado do meu tornozelo e dorme. Acordamos por volta das cinco com uma ligação de Sofia. Ela abre a câmera e pergunta da cachorra.

— Cadê minha velhinha preferida?

Zinha ouve sua voz e dá um pulo em direção ao celular na mesma velocidade que eu gostaria que viesse quando preciso saber se ela ainda está viva em algum canto da casa. Enfia o focinho no aparelho: as duas conversam e choram.

— E você, mamãe? Como está? — Sofia segue focada nos bigodes brancos de Zinha. — Vivendo dias de cão, minha filha.


Fernanda Zeloschi é estudante de Psicologia, escritora teimosa e acredita nas faíscas do afeto através do @fazerafetar


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