Não é maluco pensar na simultaneidade das coisas? Ou ainda, naqueles momentos que parecem simultâneos mas só estão cirurgicamente sobrepostos um ao outro, talvez com alguma distância quase imperceptível. Nas camadas que dão forma e corpo para tudo aquilo que existe e que inventamos. Ou ainda, na ordem impensada e bizarramente orquestrada dos acontecimentos banais. Na sucessão dos eventos que se completam, se complementam, ou se excluem.
As gotas caem como pedras na janela. Existe uma dificuldade na engrenagem que volta a funcionar, como aquele aparelho DVD que não é ligado na tomada há muito tempo e precisa acontecer aos poucos. Você caminha apressadamente e impacientemente de um lado para o outro. Eu tento acompanhar e perco o foco muitas vezes até perceber que estou com os olhos fechados. Os meus olhos se fecharam em algum momento sem que eu percebesse. Eu penso o que mais posso ter perdido nesses segundos, minutos ou horas em que estou no completo escuro, mas ainda vislumbrando a sua caminhada dentro desse cômodo pequeno. Como uma imagem que ficou congelada para mim.
Eu me pergunto se estou em um daqueles sonhos que em algum momento me dou conta de que é um sonho e simplesmente permito que ele acabe. Eu tento juntar os pedaços e refazer o caminho. Voltar. Voltar para antes do desvio. Retomar a rota. Era o que eu tentava fazer quando me esforçava para conseguir ler um texto denso e formatado em letras miúdas quando Jorge Ben começa a cantar em um volume perfeito para ser completamente agradável aos ouvidos e a letra completamente entendível. Aquela tarde de domingo combinava infinitamente mais com Jorge Ben do que com qualquer coisa que eu estivesse tentando compreender naquela tela gelada. Me permiti o desvio. Cantei um trecho “ela é a paz da minha guerra” … me distraí e a música havia sumido da mesma maneira que apareceu.
Foi quando eu carregava uma sacola com duas cartelas de ovos. Uma dúzia em cada. Cada dúzia pesando uma tonelada. Aquela estrada infinita se estendendo à frente. Toda sarjeta parecendo irresistivelmente convidativa. Escolhi um ponto de ônibus e me sentei. Não deu tempo de nenhum ônibus passar, fui fisgada pela fileira comprida de formigas que caminhava no asfalto pelando, contornando meus pés, e seguindo-as dei de olhos com um animal sendo carregado. Não arrastado. Carregado, por um grupo de pequenas formigas. Pensei como seria estranhamente confortável ser aquele animal naquele momento. Não pelo fato de estar morto. Mas simplesmente por poder, por algum fragmento de tempo, não
ser responsável pelo próprio peso e se deixar carregar. Os ovos quebraram porque apoiei sem querer, com força demais, as mãos sobre eles.
Lembra aquele dia que eu estava tão cansada que você me deu banho? Eu sentei na cadeira e você só tirou a camisa e me molhou, me ensaboou, me enxaguou, me secou. Lembro, foi engraçado. Sim, mas sabe que eu sempre sinto vontade de repetir? Foi maravilhoso, na verdade. Mesmo eu deixando o shampoo cair no seu olho? Mesmo você deixando o shampoo escorrer no meu olho! Ainda bem que a gente tem essa cadeira velha de plástico que serviu pra alguma coisa. Será que outros casais também fazem isso? Digo, não é o mesmo que tomar banho juntos. Eu acho uma puta gentileza. Por mim, pediria pra você me dar banho pelo menos uma vez por semana. Na próxima você levanta a cabeça na hora do
shampoo!
Todas as vezes que esse calor emana daí pra cá, eu penso que a humanidade começou a se amar assim: na necessidade do calor. No instinto da sobrevivência nasceu o amor e o desejo. E assim descobriram que o toque é bom, e produz calor, e torna-se escorregadio quando muito quente. E então descobriram que
deixar o vento passar também é bom. Alguém, no comecinho da espécie humana, no meio de uma nevasca, disse: eu não quero que pare. Aqui. E apontou para o peito onde batia o coração que aos poucos congelava. E alguém respondeu: posso ouvir? E chegou muito perto, colocou os ouvidos no peito e o resto do corpo apoiado no tronco. E sem querer, encostando pele com pele, ouviu o coração pulsar aquecido.
Noite passada, eu ouvi você sonhar. Você cochichou alguma coisa e eu parei de respirar para conseguir entender. Eu pedi: conta mais. E você generosamente me mostrou o diálogo dos sonhos, me alfabetizou de novo, me mostrou a sua divindade. Eu me emocionei e quis chorar. Você disse: é tudo de mentira. Eu vou acordar e você também vai. Eu pensei que você tinha razão, e que as lágrimas poderiam molhar as pegadas e apagar o caminho de volta. Quando acordamos suávamos molhando o lençol. Era quente e úmido o lugar dos seus sonhos, como o amor. Nossos corpos ficaram desenhados na cama como um mapa.
Tessi Ferreira é atriz, palhaça e escritora. Em 2019, publicou o livro de crônicas “Campo Minado” pela Editora Letramento. Atualmente, cursa Bacharelado em Ciências e Humanidades e Políticas Públicas pela Universidade Federal do ABC e integra os grupos de teatro e circo: Teatro de Trincheira e Trupe Las Manas. É professora de redação e gramática e integra núcleos de estudos e pesquisas sobre arte, política, poder, políticas públicas e território.