Negros na telenovela vale tudo: uma reflexão

Brasil, mostra a sua cara! Onde está o negro no Brasil representado em Vale Tudo? 

Nesse texto, levanto o questionamento sobre as personagens negras na telenovela Vale Tudo, exibida originalmente pela Rede Globo em 1988 e reexibida na faixa de reprises da emissora Vale a Pena Ver de Novo em 1992 e no canal Viva em duas ocasiões: em 2010, como uma das primeiras produções, e em 2018, homenageando os 30 anos de sua exibição original.  

Com a disponibilização da novela na plataforma de streaming Globoplay, Vale Tudo conquista novos espectadores, os quais irão enxergar a obra não só como um produto de entretenimento, mas também como um documento histórico, função que as telenovelas adquirem dentro de nossa sociedade. Cabe, assim, entender a função narrativa das personagens negras dentro dessa trama, levando em consideração o seu contexto histórico e relevância social.  

Eis a sinopse da novela: Maria de Fátima Accioly (Glória Pires) é uma jovem ambiciosa que sonha com luxo e riqueza. Em seu aniversário de 21 anos, decide dar um basta na vida simples e pacata que levava com sua mãe Raquel (Regina Duarte) em Foz do Iguaçu. Com a morte do avô, um homem de honestidade inabalável (tal qual sua mãe), a menina vende a casa em que vivia com a família e vai embora para o Rio de Janeiro sem avisar a ninguém. Raquel vai atrás da filha, ainda acreditando na pureza desta. Lá, ela conhece e se apaixona por Ivan (Antônio Fagundes), mas a história do casal é atravessada pelas armações da filha em busca do casamento milionário com o herdeiro do grupo Almeida Roitman. Além de Maria de Fátima, a grande vilã da narrativa é a inesquecível Odete Roitman (Beatriz Segal). A trama apresenta seus dois casais de protagonistas Raquel (Regina Duarte) e Ivan (Antônio Fagundes) e Solange (Lídia Brondi) e Alfonso (Cassio Gabus Mendes), contrastando com os vários vilões que impedem a felicidade de tantos casais.  

Entre heróis e vilões, a reflexão que Vale Tudo propõe é: existe honestidade no Brasil? Somos apresentados a várias situações críticas a respeito da sociedade brasileira, que ainda estava caminhando a passos lentos na construção de sua democracia. A censura ainda imperava na televisão brasileira como um fantasma não tão distante da ditatura e só iria cair justamente com a imposição da constituição em outubro daquele ano, quando Vale Tudo já estava em seus encaminhamentos finais. 

Conhecendo um pouco sobre o momento histórico do Brasil no momento da produção e emissão da obra e sobre a trama da novela, e considerando ainda que Vale Tudo foi exibida no horário nobre pela emissora que detinha (e ainda detém) as maiores fatias da audiência, impactando diretamente a formação da opinião pública sobre diversos assuntos, a pergunta que fica é: onde estão os negros no Brasil de Vale Tudo?

Os únicos dois personagens negros recorrentes na trama são Gildo, vivido pelo ator Fernando Almeida, e Maria José (Zezé), interpretada pela atriz Zeni Pereira. No início da trama, os dois não possuem relação direta. Porém, com os desdobramentos, os personagens acabam estabelecendo um relacionamento próximo entre si como mãe e filho, morando os dois no quartinho de empregada de Maria José. 

Gildo surge na trama como ajudante de Raquel na venda de sanduíches na praia. De fiel ajudante da mocinha trabalhadeira, ele passa a ladrão e mal quisto pelos amigos que havia conquistado em seu trabalho. Arrependido por ter passado a perna em pessoas de tão bom coração que se esforçam para ajudá-lo, Gildo reconquista a confiança da amiga com a ajuda de Zezé, que é empregada na casa do pai de Ivan, onde o garoto também é acolhido. Com a guinada na vida da ex vendedora de sanduíches, agora empresária de destaque no Brasil inteiro com uma larga rede de restaurantes, Gildo conquista um cargo de confiança ao lado de Raquel e Audálio (Paulo Rangel) e ajuda a desmascarar Maria de Fátima, aumentando o prestígio e confiança de que goza junto aos patrões. Depois de completar os estudos básicos, faz um curso técnico de administração e permanece ao lado de Raquel. 

Em Vale Tudo, não foi a primeira vez que a atriz Zeni Pereira viveu o papel de uma empregada doméstica na televisão, já tendo atuado na adaptação da obra O Sítio do Pica-Pau Amarelo (1952), dando vida à Tia Anastácia. Além de seus trabalhos na TV, atuou também no filme Orfeu Negro (1959) de Marcel Camus, seu primeiro trabalho. O ator Fernando Almeida, por sua vez, começou sua carreira televisiva aos seis anos de idade, na novela Olhai Os Lírios do Campo (1980). Participou ainda de outras produções como Sinhá Moça (1986), no papel de escravizado. Vale Tudo foi a sua sexta novela, tendo um papel de certo destaque e em contato direto com os protagonistas. 

No capítulo 134, Gildo e Maria José conversam na cozinha da casa de Bartolomeu sobre a situação em que Raquel precisou da ajuda de seu irmão mais velho, que vive “preso” dentro de sua comunidade de origem com medo de ser condenado caso saia de lá por sua participação nos confrontos da comunidade. O jovem possui vários equipamentos de rádio transmissão, de onde consegue alcançar a comunidade e diversos bairros ao redor. A sua ajuda é fundamental na resolução de uma das armações de Odete contra Raquel, mas não passa disso. Essa rápida participação desloca, mesmo que por alguns minutos, a atenção para a vida das pessoas nos morros, mesmo tendo a personagem de Lucimar (Maria Gladys), que também vive em uma comunidade e sempre falar sobre sua situação de miséria com um humor escrachado, mas sem um recorte racial nessas falas.

É apenas nessa conversa na cozinha de Bartolomeu, que os dois únicos personagens negros discutem sobre a situação da população negra no Brasil de forma ampla e clara. Esse diálogo é muito sintomático dentro de uma narrativa em que tenta examinar os pormenores da sociedade brasileira e onde critica os seus governantes, mas se esquece da população negra.

A representação de mulheres negras como empregadas domésticas sem função especifica para a narrativa, além de ajudar a resolver os problemas dos protagonistas brancos, não é novidade no cinema e no audiovisual em geral. Uma das representações mais famosas por ser controversa é de Hattie McDaniel no filme estadunidense E O Vento Levou (1940). Nessa mesma linha, no âmbito do audiovisual nacional, temos a figura de Tia Anastácia, criada pelo autor eugenista Monteiro Lobato, como maior representação dessa imagem. A doce e servil empregada doméstica que cuida das crianças, sendo muitas vezes ofendida por elas, mas sempre mantendo um sorriso no rosto enquanto cozinha e proporciona bem estar para a casa. Curiosamente, o primeiro trabalho de Zeni Pereira na televisão foi justamente o papel de Tia Anastácia, figura que, de certa forma, continuaria a representar em muitas outras produções, incluindo seu papel em Vale Tudo

Em seu livro A Negação do Brasil, Joel Zito Araújo faz uma longa análise da representação dos negros na telenovela brasileira, desde os seus primórdios até o final dos anos 1990, período de publicação da obra. Em suas análises, ele destaca a pouca representação de pessoas negras vivendo papéis de liderança, ou se atendo a problemas que vão para além do racismo. É apenas em 2004 que a Rede Globo traz Da Cor do Pecado, que ficou conhecida como primeira telenovela global com protagonismo negro – apesar de não ser a primeira da história da teledramaturgia, já que esse posto é ocupado por A Cabana do Pai Tomás (1969), com Ruth de Souza como protagonista. A adaptação do romance estadunidense ascendeu um grande debate nos anos 1960, trazendo o ator Sergio Cardoso fazendo black-face, além das diversas reclamações do elenco com o destaque de Ruth nos créditos iniciais, fazendo com que seu protagonismo fosse ofuscado ao longo da exibição. 

Esse pequeno percurso histórico serve para mostrar como, ainda que tenham se passado mais de 30 anos desde que Vale Tudo foi ao ar, a forma como os negros e negras são retratados no Brasil não mudou muito. Hoje, ocupamos papeis que vão além do menino de recados ou da empregada doméstica, chegando até a ser o foco principal em algumas tramas. Porém, eles ainda são exceção num oceano de protagonistas brancos. 


Referências do texto: 

ARAUJO, Joel Zito. A Negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira. São Paulo: Editora Senac, 2019.BUENO, Winnie. Imagens de controle: Um conceito do pensamento de Patricia Hill Collins. 1ª Edição. Porto Alegre: Editora Zouk, 2020.

BUENO, Winnie. Imagens de controle: Um conceito do pensamento de Patricia Hill Collins. 1ª Edição. Porto Alegre: Editora Zouk, 2020.


Victor Adriano Ramos é graduado em Comunicação Social com habilitação em Audiovisual pela Universidade Federal de Sergipe, mesma instituição onde cursa o Mestrado Interdisciplinar em Cinema (PPGCINE), realizando pesquisa sobre a representação negra em telenovelas da Rede Globo.


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Um comentário

  1. Ainda que é inegável o racismo estrutural ao qual Maria José está inserida (e encaro tbm como uma forma do autor ter achado, pra poder ter falado sobre racismo) de forma implícita, acho q essa novela teve um papel fundamental ao retratar o negro, dando uma certa trama, nem q fosse mínima, se diferindo de várias novelas da mesma época; Peguei a novela para assistir, estou no cap 42 ainda, porém, vira e mexe, o autor dá uma pincelada em assuntos q são considerados tabus, e o racismo é um deles. Tem uma cena, q Raquel e Gildo estão na Revista, esperando para serem atendidos, aí Maria de Fátima chega, vê os dois e os ofende, tratando Gildo de forma discriminatória; Raquel logo toma as dores do garoto, defendendo o mesmo, e ele alega que já está acostumado a ouvir aquelas coisas, ela rebate e fala que ela não. Então, mesmo que hoje em dia essa cena poderia seria feita de uma forma totalmente diferente, mas para aqueles tempos, isso era um tapa na cara da sociedade, ainda racista! Mas mesmo assim, ainda acho essa cena espetacular ao escancarar esse tipo de discriminacao, pois mostra q pessoas nao brancas ao passarem por isso, n devem agir dessa forma que Gildo agiu, porém ele é um garoto e está acostumado com essa situacao, pois com ctz n tem nenhuma referência positiva, então nao vê outro jeito pra lidar, a n ser banalizar, mas enxerga na Raquel o contraponto. Claro que a Situação da Maria José é diferente da de Gildo, o garoto claramente tem mais oportunidades, mas ainda acho o papel dela bem mais dramático que o da Zezé de Av. Brasil, por ex; Nesta última, ela aparecia para nos fazer rir ou pra sofrer nas mãos da Carminha; Já uma empregada branca, mesmo que tendo um pouco de destaque dramático ao descobrir que seu filho está trabalhando pra Carminha, mas ainda o tem (e isso, em uma novela de 2012 comparada a outra de 1988, LAMENTÁVEL!)

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