Como se alguém me erguesse do chão abro os olhos e levanto meus braços à procura dum colo. Minha face anima-se e sente profundo o ar adormecido da Natureza que nunca dorme. Inspiro astuto, intensão vívida de renovação da alma. Ouço os rugidos das carnes e dos ossos da casa desaparecendo num exercício de pudor fantasmagórico. Porque o sobrenatural tem seu momento certeiro de acontecer sobre mim. E eu nunca o desvendarei.
Levanto-me da cama intacta sem temer os caminhos do mundo e sem temer a perda da consciência. Ergo o corpo em luminescência envolta em luzes cintilantes de piruetas felizes e tão inéditas duma surpresa: o dia que nasce e que me toma novamente num intenso fervor. O mar está se abrindo e eu sem medo do poder das águas estou atravessando as barreiras de todas as manhãs que se unem à esta cinza manhã de fim de semana. Fixo meu olhar ao teto e alongo-me esbelto, movo as ondas espumosas e arrasto-me ao espiral lustroso dum pulo que para mim é salto infinito e longo com desenvoltura de acrobata que domina a estrutura mágica do circo coberto de alegria.
Os olhos que numa dificuldade quase colossal se abrem calmos e percebem que se encontram atentos em mais um dia exibido e misterioso, estes meus olhos clamam fortes pela revoada esperta e ligeira deste meu corpo tão vivo e penetrante numa sagacidade de animal selvagem no ato de plena caça complexa. É como se pudesse enxergar cegamente as veias vivas do teto e a encanação e a fiação elétrica.
Quero estar. Quero abraçar cuidadosamente os corpos desta casa e as veias junto dos órgãos perspicazes e sangrentos. Quero possuir o verde de todas as florestas que podem me proporcionar uma vida simples com direito ao mundo todo só para mim. Acordar ainda mais vivo durante todos os dias. Eu quero todos os meus sonhos em meu mural de fotos. Beijar minha máquina de escrever e abandoná-la num depósito de velharias — minha saúde exige que eu faça isso. O futuro que eu ainda não sei será feito por mim. Desistir do vintage é ainda mais vintage.
O pássaro me abandona e me sustenta com seu grito. Paro e meus pés fixam-se enérgicos sobre o chão fresco onde espraia-se um delgado raio de sol brilhante. Imagino rapidamente num relance um dos meus sobrevoos noturnos no qual eu pude contemplar as mentes das pessoas ocas de sono; naquele tempo a madrugada ainda podia me suavizar para o mundo. Mas é agora: neste momento retorno ao chão com a cabeça toda elástica e com as pernas e os braços leves, pois estou acordando mesmo depois de acordar, estou respirando e existindo pronto para seguir a nova coreografia de mais uma manhã, mas esta manhã é sábado, é sábado de cor e de alma que pulsa. Volto-me à realidade escura e sinto que procuro um colo. Está percorrendo pela casa um sentimento nublado de sábado — é sábado de manhã. De súbito o celular vibra também num despertar leve. E é céu que se irradia livre em grandes nuvens densas de tonalidade acinzentada. Estou diante do mau humor da Natureza? Sinto que meu mau humor ainda não despertou. Estou cheio de mim: eu farto de me viver e estou percebendo que pouco a pouco meu rosto revela as marcas inchadas do sono. Porque minha existência acordou e não enxergou o amor. Onde ele está? Retorno à realidade da procura e tudo o que quero é o calor que afaga dum colo de amor. É o amor: apenas o amor é capaz de me fazer despertar plenamente e sem ressentimentos. Minhas decisões são grandes tigresas famintas, mas eu resisto, eu tenho de resistir.
O céu nublado deste sábado me orienta disperso e entendo que desejo sentir a vida que surge diretamente de onde piso bruto, a vida que emerge das profundezas mais obscuras. Porque tudo, tudo me exige. A raiz me sacia. Eu não deixo que a melodia se inicie enquanto eu não sentir. O amor está contaminado. Inspiro novamente e tento reconhecer esta casa onde moro. Estou suando.
Amo e livro-me de tudo porque tudo me atrasa. É agora e eu vou de novo: caminho numa respiração quase ofegante. Manhã de sábado é sempre uma desconfiança. Viver acordado a manhã de todas as manhãs exige a ação de peixe que salta da água e captura veloz o fruto suculento da árvore. Eu vou até o oxigênio e tento acordar de verdade. Inspiro e inspiro e suspiro e suspiro. Aproximo-me com certa pressa da cozinha e da própria garrafa tomo um gole demorado de leite. Minha visão ainda está perturbada — sem sentir a superfície da mesa arrasto a mão como impulso para meus movimentos e ainda dormente derrubo um livro perdido que cai sobre o assoalho encardido desta minha casa e desliza rápido em perturbação até área próxima do jardim. Caminho com brilhos coloridos no olhar e com uma fraca sustentação; as pernas quase bambas me fazem cambalear de tontura. Paro e procuro a parede, encosto a cabeça pesada e busco o ar límpido e fácil, mas numa primeira arfada forte este meu corpo em densa leveza não se alimenta do ar e num sobressalto ambicioso conscientiza-se de minha dificuldade — fecho os olhos e lamento junto dum murmúrio sólido duma emulsão sentimental: acordei e me alonguei e fantasiei e enlouqueci. Os sussurros tímidos do peito me fazem levantar a cabeça e caminhar pausadamente até o jardim que me fornecerá um tanto mais de conforto diante da condição um pouco mais arejada. O céu está dum tenebroso aspecto de algo que aviso prévio derrubará sobre mim todas as consequências e as tristezas divinas num só raio de trovão ardiloso. O barulho muito ao longe dos automóveis que acelerados rumam velozes aos mais diversos destinos desta cidade aborrecida toma de vez minha atenção distraída pela agonia do delíquio. Cainho vagaroso e já posso captar o aroma das plantas e da terra que é aroma mágico de tanta potência viva. Dirijo-me ao jardim iluminado ainda que esta manhã não revele toda a luz do universo, pois mesmo sob a escuridão de nuvens carregadas as plantas e a terra sempre exalarão seus odores vivos e também avivarão toda a vida que há em mim. Uma bomba urbana explode em minha implosão de poder e concede-me a força para percorrer por grandes estradas e enfim alcançar os imensos jardins do mundo. Esta minha paixão por grandes palácios. Eu e meus gostos megalomaníacos caminham agora com velocidade de corredor e atravessam a porta rápidos porque tudo pode acabar: o ouro pode acabar de repente sem que eu o sinta puramente.
É brilho aromático de plantas verdes que existem manchadas dum seco amarelado. E estas incessantes fotossínteses. Estou quase dentro da planta e estou quase me alimentando de seus produtos energéticos. As folhas balançam com uma leve rajada dum vento distante e delgado que circula muito sem rumo pelo jardim: vai e vem como as mais leves e invisíveis ondas do mar calmo que prepara a mais grandiosa de todas as ondas do fundo marítimo de mistério, mundo tão desconhecido das águas suaves e brutais que juntas são capazes de derrotar toda a humanidade. E o vento corre nesta caixa cada vez mais escura de nuvens carregada sem saber ao certo para onde continuar fluindo solto pelos cantos mais distantes da cidade.
Sinto-me preso e parado nesta caixa fechada e abafada tento me mexer e mover o corpo num movimento sem qualquer desenvoltura a fim de elevar-me à paixão quase sonora da vida esverdeada destas plantas que resistem paradas e tão iluminadas diante desta escuridão de luz opaca e nimbosa das constantes alterações do tempo — este tempo que vai e vem certeiramente e quando surge tem em mim seu alvo doloroso de tanto prazer, atingir-me é sempre uma grande satisfação: este tempo dubitável avança rápido e passa por mim como o projétil veloz que procura numa trajetória retilínea o alvo mais provável: aquele que permanece parado à beira do mar das ondas de minha flora brilhante. O tempo e sua urgência; este tempo tão incerto e premente — é pelo tempo que parado vasculho ao meu redor à procura duma caixa de vida que me ofereça a mesma intensidade da paz inquieta destas minhas plantas. E com cuidado respiro ainda tonto porque o tempo, este tempo ainda não parou e ainda não é hora de tempestade. Seguir a Natureza que é certeza de vida mortal.
Chuva que não sabe se me molha com respingos frios ou se continua nesta indecisão nublada. Pois sábado é sagrado portanto. O tempo me mostra o que não quero ver nem sentir, eu que pensava ser a chuva pesada e úmida materialização da tristeza de Deus. O tempo me quer todo coberto de sono, mas repleto duma insônia diabólica. O tempo é puro como a maldade do mundo é pura: perpassa-se quase íntegra e apenas se modifica de acordo com o momento. Tudo e as formas de ser diferente sendo o mesmo. A essência nunca mudará. Porque o tempo e o amor continuarão sendo e sendo os mesmos. Tempo e amor é amar. É amar.
As fitas de concreto que se movem. A chuva não me atingirá, mas eu serei atingido. Num instante imperceptível serei gravemente atingido por uma força, pela força cômica do que não se decide. E agora sou eu e agora é o impacto: qual planta acaricio primeiro? É muito difícil dar a atenção que elas merecem duma forma equilibrada e destituída de preferências. Assim não possuo preferida: todas têm o momento certo e mais potente de amor em meu coração. E eu amo, amo porque as plantas são minha vida e não somente a razão de minha vida: são este meu ímpeto de viver. Sem minhas plantas sou semente pisoteado sobre a estrada infinita das plantações. Eu aceito. Sem minhas plantas morro sufocado e sem amor na carne solitária.
Só não sou solitário porque inspiro minhas plantas todas as manhãs de extrema tontura. Eu sei, eu posso sentir. Eu posso sentir que quando estou dormindo não sou o mesmo. Por isso agora abro meus longos braços platinados e abraço: simplesmente agarro minhas sensações vitais e abraço num aroma terroso estas minhas plantas vistosas. Sinto-me chorando, mas é choro de manhã de sábado e é também choro de alegria, pois enfim acordei e ainda que cambaleando consegui aterrissar neste jardim — enfim posso viver o sábado.
O jardim possui melodia própria. O cheiro da terra me faz despertar para a fome que sinto. Posso sentir. Sinto a música muito materna e calma das plantas e sinto também o aroma de Deus, este divino cheiro doce-amargo da terra negra de força que me resgata do fundo de quem sou ainda em rasa dormência de sono, a força da Natureza que me salva no momento do salto tonto.
O jardim possui seu ritmo próprio: vive de acordo com a música etérea de tão terrena. O jardim é vivo e pulsa, pulsa ritmado e calmo como as mãos da mãe que acarinha o filho em choro pegajoso e desesperado. E eu sinto. Ainda que diante do sono que não me deixa acordar, ainda que o sábado seja dia de caminhada e de lembrança da semana morta.
O jardim é explicação de vida, pois só eu não percebi, a semana não me permitia perceber que ainda sob as mais difíceis dificuldades este jardim permanece pulsando vida e pulsando resistência. Ainda que tudo morra, este meu jardim continuará vivo e perpetuará vida pela eternidade que me é impossível. Então eu aproveito enquanto a eternidade até este momento não me alcançou, aproveito com a força das plantas, aproveito tudo o que este jardim pode me proporcionar. Eu sinto e posso sentir que este jardim é pura vida que cresce à procura da luz ensolarada, este jardim me é a vida que não pulsa em mim, ainda, que ainda não pulsa em mim. Posso sentir a musicalidade de cada folha verde, de cada caule escuro de proteção e de cada grossa e singela raiz. Porque eu quero sentir o poder da vida e o poder da vida é planta que nunca morre, é planta que me encanta.
Posso sentir o colo. O choro me refresca: é sábado de tentativa de viver. É sentimento de afago nesta minha alma chorosa. É colo divino. O colo materno exala um cheiro de mãe e de pai. O colo materno é quente e acolhe-me. O colo materno encontra o que me falta e entrega-me a vida novamente; vou sentindo e sentindo cada vez mais.
Os segundos do sábado que decorrem. Vou aproveitando que é destino de todos nós. Vou muito lentamente recolhendo numa concha que faço com minha mão, vou pegando com extremo cuidado de mãe um punhado desta terra eterna, a terra que já ultrapassou as barreiras de todos os tempos e de todas as eras, esta terra que me sacia: provo áspero da mais primária e forte vida, provo tímido, mas com a vontade ininterrupta de guerreiro, provo da terra que me compõe a esperança vasta e que me faz olhar para cima e sentir a gota da chuva.
O colo materno da terra é a Natureza se enraizando em mim. A mãe-terra me acolhe quente em seu colo. Ah, minha mãe, como eu te amo… O colo materno é sorriso largo de vida e por isso diante da fina chuva que se avoluma vou apertando e sentindo o pulso da terra em minha boca esfomeada que me ultrapassa a pele grossa e alcança meu espírito.
A manhã é poderosa, a manhã de sábado é poderosa, pois neste instante engulo firme e provo do que é viver a Natureza. Eu acordo e mesmo tonto me alimento da vida. Porque é sábado de euforia em minha alma.
João Paulo Abreu de Oliveira é estudante e escritor cearense, nascido e residente em Fortaleza, escreve desde os doze anos de idade e participou da coletânea de crônicas publicada em 2021 pela Universidade de Fortaleza.
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