O que fazer? e União Operária: a obra de Tchernychevskii à luz de Flora Tristan 

Na cidade, os teatros estão cheios. Os palacetes gastam nas mesas fartas. As operárias trabalham cinco anos para ganhar o preço de um vestido burguês. (…) -Isso tudo é tirado de nós. O nosso suor se transforma diariamente no champanhe que eles jogam fora! Pagu, 1933 

As palavras acima são do primeiro romance proletário do Brasil, Parque Industrial, que colocava no centro o prosaico cotidiano das operárias. Se o olhar atencioso que, em 1933, captava a relação mulher-classe não estava tão em alta como hoje, imagine, então, como era no séc. XIX? 

E é exatamente nesse século, onde os ecos da Revolução Francesa podiam ser ouvidos, que surge a obra da franco-peruana Flora Tristan. Contemporânea de grandes nomes como os socialistas utópicos R. Owen e Saint-Simon, Tristan focará na questão operária e de gênero. 

Em consonância a isso temos o romance do jornalista russo Nikolai Tchernychevskii, publicado em 1863, durante sua prisão. O autor russo foi impedido de continuar com a redação de seus ensaios filosóficos, contudo seguiu agitando a revolução, driblando a censura czarista ao camuflar suas ideias num romance. 

Como dirá Segrillo, tradutor do livro, a obra é “aparentemente uma inócua estória sobre uma jovem que busca a felicidade e a libertação como mulher em experiências cooperativas” que pôde “influenciar os intelectuais russos a desistirem da tentativa de reformar o autoritário regime czarista e passarem ao caminho da revolução” (p. 8-12). Esse é o último clássico russo a chegar em nossa língua, traduzido em 2016 e publicado primeiramente pela Editora Prismas e dois anos depois pela Expressão Popular. 

Flora Tristan, primeira a proclamar o princípio da autoemancipação proletária 

A obra da autora peruana, que se tornou operária aos 17, vai de romances a livros que pretendiam contribuir à ação dos operários. Voltando sua atenção à organização dos trabalhadores, ela lançou seu livro mais importante, União Operária, publicado de forma independente, pois foi rejeitado pelos editores da época. Ainda assim, foi publicado com uma tiragem de 4 mil exemplares – superando em duas vezes a primeira tiragem do Manifesto Comunista e em quatro vezes a famosa obra de Proudhon Que é a propriedade?. 

L. Konder, um grande nome do marxismo no Brasil, afirma que Flora Tristan chegou a ser reconhecida como uma das personalidades mais notáveis do socialismo francês na época — Marx e Engels inclusive chegaram a defende-la de uma acusação no livro A Sagrada Família. Se somarmos isso ao que Varikas nos diz no prefácio de União Operária, podemos ter ideia de sua importância: 

“Há poucos textos tão potentes como este na história do feminismo, que denuncia vigorosamente a opressão das mulheres em geral e das operárias em particular. A união operária é uma obra única em sua época, pela associação da causa da emancipação dos operários e das mulheres.” (2015. p. 11) 

Tristan morreu em 1844 e não pôde ver a associação da emancipação dos operários e das mulheres posta em prática. Mesmo que tenha buscado que a “classe trabalhadora fosse constituída em uma estrutura pacífica e longe de motins e levantes” (DÍAZ, 2012 p.169, tradução nossa), foi com a Comuna de Paris que se adotou decretos, como o artigo XII que diz 

“A submissão das crianças e da mulher à autoridade do pai, que prepara a submissão de cada um à autoridade do chefe, é declarada morta. (…) A Comuna proclama a liberdade de nascimento: o direito de informação sexual desde a infância, o direito do aborto, o direito à anticoncepção…” (FRANÇA, 1871, apud BOITO, 2020) 

Se a Comuna — por significar um poder político — foge do campo de discussão de F. Tristán, o mesmo não acontece no “campo” de O Que Fazer?, livro que foca numa personagem que tomará a frente de uma organização corporativista, criando uma sociedade entre as trabalhadoras, visando fazer algo parecido com a proposta de Tristán sobre o “Palácio da União Operária”. 

Palácios e ateliês: o dialogo dos dois escritos 

Ao tratar destes palácios, a escritora dirá que o essencial é que possam oferecer salubridade, alojamentos para idosos, empregados e crianças, além de oficinas, escolas e salas de exercícios onde os párias, aqueles confinados à exclusão legal como operários e mulheres, poderiam se hospedar. Já no romance, o foco está no ateliê, uma espécie de fábrica têxtil, onde se desenrola a trama política. A protagonista, Vera Pavlovna, contrata algumas párias e, após um mês de trabalho, mostra a elas a novidade do novo sistema que busca implementar. Calcula as receitas e despesas do mês e distribui a grande quantidade de dinheiro igualmente entre todas. O salário é mais alto do que se esperava e isso é explicado da seguinte maneira: “Elas trabalham para si apenas. São seus próprios patrões. Por isso recebem aquela parte do lucro que ficaria com o dono do estabelecimento” (TCHERNYCHEVSKII, 2020. p. 498). 

Uma semelhança com a proposta de Tristán surge quando as tecelãs guardam certa quantia, permitem empréstimos sem juros, criam um banco, em seguida uma cooperativa de compras e, ao perceber a vantagem de se comprar em grande escala também os alimentos do dia a dia, decidem morar juntas, onde criam uma espécie de sociedade. 

Sem dar conta dos enfermos, como na proposta do Palácio, a idealizadora do ateliê busca professores para transformar esse espaço em um Liceu de vários conhecimentos e, mais pra frente, o marido de Pavlovna, convencido desse feito, encontra pessoas dispostas a alfabetizar, pois, assim, os trabalhadores vão estragar “menos as máquinas e o trabalho devido a haver menos absenteísmo e embriaguez” (TCHERNYCHEVSKII, 2020, p.336). 

Como e “porque menciono as mulheres” 

No terceiro capítulo de União Operária, “porque eu menciono as mulheres”, é explicado o motivo das mulheres estarem na condição de pária: até o momento não contaram para nada nas sociedades humanas e era desse modo que as figuras do padre, legislador, filósofo a tratavam. “Mulher, foi constatado pela ciência que por tua organização, tu és inferior ao homem (…), não tens inteligência” e depois de listar as qualidades que falta, a autora nos diz com certa ironia: “Vejam (…) como os sábios dos sábios julgaram a raça mulher.” (2015. pp. 110-112) 

O que lhe dá esperança é o fato destes sábios terem tido essa mesma atitude quanto aos proletários, pois este também era um nada, uma besta de carga, mas depois que veio a Revolução Francesa estes sábios passaram a exaltar a plebe como povo. “O que aconteceu com os proletários (…) é de bom augúrio para as mulheres quando seu 1789 houver soado” (TRISTÁN, 2015. p. 112, 114). 

Entendendo a maneira como a autora trata a pária, podemos perceber a semelhança que o romance russo apresenta uma concepção de condição subalterna da mulher. Pro clássico russo 

É a força do preconceito, o mau hábito, a falsa expectativa e o falso medo. Se a pessoa pensa ‘não posso’, então realmente não conseguirá. Às mulheres é dito: ‘Vocês são fracas’. Aí elas se sentem fracas e, realmente, agem como fracas. (TCHERNYCHEVSKII, 2020. P. 440) 

As semelhanças parecem parar por aí, pois ao N. Tchernychevskii faltava certa visão diferenciando as classes e parece que por isso ele utiliza um personagem para argumentar que “mulheres colocarão os homens em plano secundário na vida intelectual, uma vez que a era da força bruta tenha passado” (2020. p. 438) e o diálogo segue até afirmar que a mulher até agora teve um papel tão insignificante na vida intelectual porque o domínio da força tirou dela os meios para desenvolvimento e os estímulos para se desenvolver. Já Tristan tem uma ideia de igualdade que será alcançada por meio da classe operária e argumenta que a maneira de resolver tais problemas é “começar por instruir as mulheres, porque são as encarregadas de instruir meninos e meninas” (2015. p. 123). 

Uma segunda diferença importante nas duas obras está na conclusão de suas propostas. F. Tristan propõe a União Operária. Para tal apresenta a ideia de um Comitê para ajudar a gerir e eleger representantes. Sua proposta conclui-se neste ponto onde e sem colocar a problemática do poder. 

Já o jornalista russo enxerga o problema existente para além das fábricas. Na página 442 de seu romance, apresentará uma situação vivenciada por duas personagens em que, perseguidas e com risco de serem assediadas, ao resistirem, veem o seu agressor chamar a polícia contra elas, acusando-as de ladras. 

Esta e outras passagens do livro servirão para que o autor alcance seu objetivo principal ao escrever o livro: mostrar os problemas em se manter nos marcos da reforma, sendo necessário a revolução. Isso graças ao que o autor, na voz do narrador chamará da primeira e principal exigência da arte: descrever as coisas de modo que o leitor possa imaginá-las como elas realmente são” (TCHERNYCHEVSKII, 2020. p. 392). E ao fazê-lo, também nos oferece um panorama do que deveria e do que poderia ser. 

Como pudemos perceber, a obra de Flora Tristán e Nikolai Tchernychevskii apresentam semelhanças e diferenças. Há contrastes em suas ideias, afinal não só no conteúdo, mas também na forma se diferem. Talvez o personagem Lopukhov de Tchernychevskii tenha captado a intenção destes dois autores partidários da mudança: “Nos seus livros está escrito que, se não se deve viver assim, então é preciso mudar tudo. Mas se não se pode viver como as instituições atuais (…), por que não se apressam em introduzir uma nova ordem?” (2020. p. 49). 

REFERÊNCIAS: 

DÍAZ, H. Flora Tristán: su papel en la constitución del socialismo y de la clase obrera francesa. Archivos de historia del movimiento obrero y la izquierda, n. 1, p. 153-173, 1 sep. 2012 

BOITO, Misa. A luta contra a opressão da mulher. São Paulo: Nova Palavra, 2020. 

TCHERNYCHEVSKII, Nikolai. O Que Fazer?. São Paulo: Expressão Popular, 2020 

TRISTÁN, Flora. União Operária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2015 

VARIKAS, Eleni. Prefácio. In: TRISTAN, F. União Operária, São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2015 


Leonardo Ladeira, conhecido entre skatistas como “Ratão”, é apaixonado e curioso pelas literaturas e estudante de Bacharelado Interdisciplinar de Ciências Humanas na UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora



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