MARIA AUXILIADORA: ARTISTA NAIF?

Uma Breve Biografia

Maria Auxiliadora da Silva nasceu em Campo Belo, interior de Minas Gerais, em 1936, filha mais velha de oito irmãos. Com a morte prematura de seu pai, a família se mudou para São Paulo e, dados os problemas financeiros enfrentados no período, aos 12 anos Maria teve que abandonar a escola para ajudar a mãe nas tarefas domésticas. Mesmo sem estudo formal, a mãe de Maria Auxiliadora, Maria Almeida da Silva, era artista, bordadeira e escultora, e para gerar mais renda para a família, ensinou Maria Auxiliadora a bordar, levando a filha mais velha para vender sua produção nas feiras de artesanato da cidade.

Aos 14 anos, Maria Auxiliadora inicia um curso de corte e costura; aos 16, começa a pintar com lápis de cor; e aos 18, inicia-se no guache. Nos anos 60, Maria começa a frequentar juntamente com seu irmão Sebastião o coletivo artístico de Embu das Artes, espaço voltado para o aprimoramento artístico independente, com foco em Arte Afro-Brasileira.  Durante seus anos no coletivo, Maria Auxiliadora começa a denominar sua produção como “primitivista”, termo possivelmente cunhado a ela de forma pejorativa, mas que a artista abraçou e incorporou ao imaginário de sua produção.

E quando pintava assim não tinha contacto com pintor nenhum, sabe. Nem meus irmãos. Eles ficavam lá e não davam opinião nenhuma. Eles falavam que eu devia estudar só. Como a pintura de Sebastião (irmão) sempre foi muito diferente, com muita pesquisa, ele não entendia primitivo naquela época. E ele achava que a minha pintura era assim muito mal feita e que eu tinha que entrar na escola pra estudar. Às vezes eu fazia uma figura assim pequenininha na frente e uma maior lá atrás e ele achava que não tava certo. Eles nunca estudaram. Gostava muito de ler e acompanhar esses livros de pintores. Mas eu não via pintor nenhum nem via livro, quer dizer que isso foi uma coisa pura, saía de dentro de mim.

(SILVA, Maria Auxiliadora. 1978. Pg. 77)

É também neste período que Maria Auxiliadora começa a usar massa Wanda, e esta técnica, assim como incorporação de mechas de seu próprio cabelo nas telas, se tornaram sua marca registrada. A partir de 68, pode-se considerar a produção de Maria no seu período maduro, tanto pelo aprimoramento das técnicas formais quanto pela diversificação das temáticas retratadas. A produção de Auxiliadora gira em torno de três eixos temáticos: Religiosidade, Festas Populares e Cotidiano, cuja presença de personagens femininas é marcante e predominante.

A estadia no coletivo de Embu para Maria não dura muito; alguns meses depois, a artista volta para a capital onde passa a vender seus trabalhos na Praça da República. É neste local que conhece o físico, crítico de arte e cônsul norte-americano Mário Schenberg, que apaixona-se pelas obras de Maria e resolve fazer uma exposição delas no consulado norte-americano em São Paulo. A mostra de “Pintura Primitivista de Maria Auxiliadora” acontece no ano de 1969, na Galeria USIS e é um tremendo sucesso, o evento impulsiona a artista para o exterior, e a mesma dá início a sua carreira internacional

Graças ao sucesso da exposição no consulado, Maria Auxiliadora é convidada a expor na 10ª Bienal de São Paulo, na Galeria Zimmer em 1972, e na Arte Fair Suíça em 1973. E devido ao recente reconhecimento, Maria monta seu ateliê e resolve voltar a estudar, matriculando-se no Centro de Alfabetização Beato Marcelino Champagnat em 1972. Entretanto, no mesmo ano, a mesma descobre-se com câncer generalizado, e passa a consultar-se em clínicas, hospitais, terreiros e centros espírita.

Artisticamente falando, este período caracteriza-se como um dos mais produtivos da vida da artista, seja pela recém adquirida estabilidade financeira, seja pela fundação do ateliê. Nestes anos, a temática dos quadros muda, e Maria passa a representar seu “novo cotidiano”, dando preferência a cenas do imaginário religioso, enterros, funerais e missas. Depois de uma longa batalha contra o câncer, Maria Auxiliadora da Silva morre em 1974, aos 39 anos.

Primitiva? Naif? Artista?

Dentre as muitas coisas que chamam a atenção na produção de Maria Auxiliadora, uma das que mais inquieta é a categorização dos trabalhos da artista, que desde o começo da carreira se autodenominava “primivitista”. O termo “primitivista” foi usado pela primeira vez na história ainda no século XIX como uma forma de distinguir a arte europeia, entendida como culta e civilizada, das produzidas nas colônias além mar, sobretudo na África, associando esta produção a um “início” de civilização, o que embasava o racismo e a dominação colonial.

Ver este mesmo termo sendo aplicado às obras de uma artista negra, latino-americana, cuja educação formal foi interrompida ainda na infância, explicita que parte do sucesso que a pintora obteve foi devido a um olhar racista da crítica – que, aproveitando-se na nomenclatura que a artista se alcunhou, encaixou-a num nicho de mercado que favorecia uma visão hierarquizada na arte. Válido lembrar que a produção brasileira, sobretudo a de pessoas negras, sempre foi vista como fetiche pela crítica internacional, que ainda no século XXI se recusa a categorizar a arte latino americana como “ocidental”.

Mesmo dentro do mercado brasileiro, a produção de Maria ainda foi alvo da crítica racista da época, que enxergava sua inserção nos grandes circuitos de arte não por mérito, mas como um “favor”. Um dos grandes mecenas da arte do período, Pietro Bardi, fundador e diretor do Museu de Arte de São Paulo (MASP), que abriu as portas do museu para ela e tantos outros artistas “primitivistas”, tem falas contraditórias sobre a produção de Maria, explicitando o racismo que perpassa o trato de suas coleções.

A sua pintura exalta uma felicidade descritiva e vibrações de cores vistosas […], narra a religião dos ancestrais […] é concebida com a mesma preocupação de uma dona de casa que, recebendo visita quer que tudo esteja em ordem.

BARDI, Pietro M. “Lembrança de Maria Auxiliadora”. In: ___ (org.). Maria Auxiliadora. Turim: Editora Bolaffi, 1977, p. 35.

Uma vez que a nomenclatura “primitivista” seja considerada inadequada na contemporaneidade, a produção da artista passou a ser enquadrada como pertencente ao então denominado movimento da Arte Naif. Naif por sua vez, é também uma ressignificação de um termo pejorativo, tendo sido utilizado pela primeira vez no séc. XIX, para referir-se (e diminuir) a produção de Henri Rousseau, pintor acadêmico da época.

Atualmente, o termo Naif é utilizado para denominar a produção de artistas que produzem sem ter formação acadêmica, cuja trajetória e temática se relacionem com a cultura popular, e cuja obra apresente tanto originalidade técnica quanto processual. São ainda designadas como características da produção Naif: a perspectiva simples, as cores chapadas, as figuras humanas simplificadas, a utilização da combinação texto + imagem, além de estereótipo pejorativos como “ingenuidade”, “pureza” e “simplicidade”.

Pensando em romper com esses preconceitos e reservar um lugar para a produção “ingênua”, o SESC Piracicaba (interior de São Paulo), em meio ao projeto Cenas da Cultura Caipira, cria, em 1986, a primeira “Mostra de Mostra Nacional de Arte Ingênua e Primitiva”, responsável por exibir pela primeira vez, fora do circuito de arte das capitais, 38 obras de 19 artistas. Anos se passaram e a iniciativa foi abraçada pela cidade e por toda região, que passou a ter outro olhar sobre a produção local, tornando mais tênue a linha entre artesãos e artistas dentro do circuito expositivo.

A cidade de Piracicaba, neste contexto, se mostra relevante por ser um dos representantes mais fortes do imaginário caipira do estado, este já tendo sido vítima de preconceito, exclusão e negação pelos próprios munícipes, que no passado tentaram apagar seus próprios traços culturais almejando equiparar-se aos costumes da capital. Nos dias de hoje, estes mesmos indivíduos lutam pelo reconhecimento e valorização destes traços que singularizam os costumes locais e seus habitantes. Neste sentido, a escolha da cidade para sediar a Bienal Naif é política, pois representa um núcleo de resistência e sobrevivência do modo de vida interiorano, possibilitando novas relações entre os moradores da cidade e a cena de arte.

Pensando em todas estas discussões que perpassam os fazeres dos ditos artistas Naif, a então chamada Bienal de Arte Naif resolve retirar a palavra “arte” de sua nomenclatura, por compreender que a produção Naif tem muito mais a ver com a vivência do artista e de como ele vê sua própria produção, imagem e representação, do que dos cânones da “Arte”, ditados e discutidos academicamente. A este respeito, o texto curatorial da Bienal Naifs de 2022, disponível no site da mostra, diz:

Naïf é um termo de origem francesa, derivado do latim nativus. Sugere algo “natural”, “ingênuo”, “espontâneo”, tendo sido utilizado originalmente no campo das artes para descrever a pintura e as propostas do artista modernista francês Henri Rousseau (1844-1910). A adoção do termo pela Bienal, no plural e desvinculado da palavra “arte”, evidencia seu foco no artista e em suas manifestações diversas e múltiplas, deixando em aberto os possíveis significados e características do que é ser naïf.

Sendo assim, a obra de Maria Auxiliadora pode ser enquadrada como arte Naif não por uma suposta ingenuidade da pintora ou pela “ausência” de técnica, mas sim por se tratar da materialização do cotidiano de uma mulher negra, vinda do interior de Minas Gerais e com pouca educação formal, que produz observando a si e aos seus. A representação deste nicho de realidade configura uma expressão política que por muito tempo foi mantida a parte do circuito de arte e, uma vez abraçada pelo circuito de Naif, as pinturas de Maria Auxiliadora ganham outra camada de complexidade, pertencendo um movimento que a partir de suas singularidades, reivindica espaço e reconhecimento apesar do olhar elitista e racista da crítica.


Referências

BULL, Márcia Regina. Artistas primitivos, ingênuos (naïfs), populares, contemporâneos, afro-brasileiros. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2007, p. 35. Disponível em: <http://tede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2696/10/Marcia%20Regina%20Bull11.pdf>. Acesso em: 02 de julho de 2022

BARDI, Pietro M. “Lembrança de Maria Auxiliadora”. In: ___ (org.). Maria Auxiliadora. Turim: Editora Bolaffi, 1977,

ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa8785/maria-auxiliadora. Acesso em: 02 de julho de 2022. Verbete da Enciclopédia.

FERREIRA, Fernanda G., IPÁ – Força: Obra e vida de Maria Auxiliadora Silva, Trabalho de Conclusão de Curso em Teoria, Crítica e História da Arte, Departamento de Artes Visuais,  Universidade de Brasília, Brasília, 2019.

MASP, Maria Auxiliadora: Vida Cotidiana, Pintura e Resistência. São Paulo. 2018. Disponível em: https://masp.org.br/exposicoes/maria-auxiliadora-da-silva-vida-cotidiana-pintura-e-resistencia. Acesso em: 02 de julho de 2022

MESTRE, Marta. Adjetivo Esdrúxulo: Maria Auxiliadora. 2018. Disponível em: https://www.buala.org/pt/vou-la-visitar/adjetivo-esdruxulo-maria-auxiliadorailiadora |. Acesso em: 02 de julho de 2022.

MIGLIACCIO, Luciano. “Pietro Maria Bardi no Brasil: história, crítica e crônica de arte”. Modernidade Latina. Os Italianos e os centros do Modernismo Sulamericano (seminário internacional, São Paulo, MAC/USP, 2013. Disponível em: <http://www.mac.usp.br/mac/conteudo/academico/publicacoes/anais/modernidade/pdfs/LUCIANO_PORT.pdf>. Acesso em: 02 de julho de 2022

PROJETO AFRO. Maria Auxiliadora. São Paulo. Atualizado em 01 de junho de 2021, Disponível em:https://projetoafro.com/artista/maria-auxiliadora/. Acesso em: 02 de julho de 2022


Sara Uliana é artista, graduanda em Museologia pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP) da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR), ex-graduanda em História da Arte pela Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa relações entre Arte Contemporânea e prática museal e possui interesse em temas da Fotografia, Documentação Museológica, Cosmopolítica e Arte Urbana.



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