Simone de Beauvoir, no século passado, alertava para um estado de servidão[1]. Tal continuum existe e se impulsiona sob o reflexo da insuficiência, que é manifesta em diversas instâncias do corpo social, ou seja, há sempre um espaço para exigir determinadas ações e reações — lidas por práticas sociais — ao passo em que essas nunca soam como suficientes, é necessário uma constante subordinação e, posteriormente, subalternidade para responder a determinadas circunstâncias de forma dócil, amável, sem que haja confronto e desconforto. Nesse sentido, constata-se um corpo social tensionado por uma estrutura (patriarcado) que molda práticas sociais a partir de suas expectativas geradoras, ou seja, expectativas que geram sentido às violências que se direcionam a mulheres a cada minuto. Enquanto escrevi este parágrafo, 24 mulheres foram agredidas no Brasil.[2]
Nos relacionamentos amorosos, nos ambientes de trabalho, nas escolas e centros de graduação e pós-graduação, entre outros, todos esses espaços de sociabilidade se reúnem sob esse denominador que reforça uma subcategoria — de força milenar — às mulheres. De Aristóteles a Tertuliano, da filosofia ao pensamento teológico, o paradigma da mulher enquanto projeto defeituoso, incompleto e insuficiente, pousou em terreno fértil mediante linguagem, também, política. Veja, em Aristóteles, a defesa de que a mulher está para o homem tal qual encontra-se o governado para o governante; em Tertuliano, o crime de ter destruído a imagem de Deus — que, para o autor, seria o homem — e, portanto, ter provocado a morte do Filho de Deus, sendo a própria porta do demônio. Muda-se a linguagem, a estética, funcionalidade e, com pluralidade de faces e configurações, a mensagem direta da insuficiência — seja do não-pertencimento, indignidade, enfim — aposta na culpa como mecanismo que busca na vítima a sua própria transgressão e sentença. Não basta exigir uma série de comportamentos de mulheres as enxergando dentro dos limites criados e impostos, é necessário culpá-las de “suas” insuficiências para que haja constante estado de subalternidade, portanto, revisão de seus comportamentos que, por sua vez, visaria a adequação à estrutura. Aqui, é importante ressaltar que, apesar de chamarmos o patriarcado de “estrutura”, portanto, algo abstrato, não o compreendemos como circunscrito ao corpo social, como algo excepcional e fora de regra, ao contrário, o percebemos mediante ações que silenciam, violam, diminuem e matam mulheres diariamente. Dessa forma, não compreendemos que mulheres caminham, conscientemente, para esse mal; acreditamos que há violências diárias que fazem com que busquemos certos ideais que nos foram ensinados sob o título de “bem-estar”, entre eles, a concordância ao invés da discordância, a submissão ao invés da emancipação, entre outras coisas que não incomodam sistemas e homens (percebidos, aqui, enquanto categoria privilegiada por essa estrutura).
A capilaridade dessa estrutura social orquestra, em diversos espaços, camadas de servidão pois, assim, se perpetua. Um estado contínuo de servidão não se dá apenas por uma via, um exemplo singular e concreto pois, se assim o fosse, não teria peso milenar, seria facilmente destituído, ou seja, a servidão não está apenas quando homens, por exemplo, querem ser servidos por mulheres através de serviços gerais da casa que compartilham; homens também querem ser servidos do êxito no trabalho científico de mulheres quando roubam suas ideias, não as citam em suas produções científicas; homens se servem do pioneirismo de mulheres. A servidão é aprofundada, ainda, quando homens querem ser servidos de afeto profundo e honesto mesmo quando não estão dispostos a corresponder, pois assume-se uma postura que entende o amor como disposição natural e orgânica de mulheres em direção a eles. A socialização de gênero aprofunda, em síntese, a ideia de doação compulsória de mulheres, enquanto alguns homens se fartam de seus pedaços.
Pela capilaridade, a identificação dessas células que exigem e nos aprisionam em servidão é um exercício sensível e cansativo, sobretudo em espaços em que não se espera tais ações, onde mulheres conseguem discutir patriarcado, machismo e violências, tal como ocorre nos centros universitários. No entanto, por essa noção comum, blindou-se esse espaço numa lógica fluida de conhecimento/desconstrução, como se isso ocorresse por espontaneidade. A verdade é que a desconstrução é um processo com seus resíduos que, em muito, são mantidos pois favorecem um sistema no qual homens possuem proeminência e, o ego, nesse caso, é parte fundamental para entender as novas camadas recheadas de patriarcado que se impõe sobre mulheres nesses espaços. Manter-se altivo num ambiente de produção científica é tentador para que êxitos pessoais sejam reconhecidos, afinal, o reconhecimento é uma das balizas para abertura de oportunidades. O descompasso, por sua vez, blindado por essa noção comum de desconstrução, reitera — com o peso de uma folha — a não-existência ou não-necessidade da escuta, afinal, acredita-se que pelo conhecimento de estruturas que subjugam mulheres, chegou-se numa condição em que não existe influência dessa mesma estrutura nas práticas que moldam rotinas. Em outras palavras, acredita-se numa fórmula mágica, pó de pirimpimpim que serve de guarda chuva contra a influência de um sistema milenar opressivo, contra a influência do patriarcado. Confrontar-se com machismos onde não há um porta voz explícito tornou-se exercício de sobrevivência.. Subverter a estrutura é delimitar influências, fazer valer a discordância/concordância, amplificar a sua voz no encontro com outras e, se necessário, dizer a plenos pulmões: “não me encosta!” à indivíduos, circunstâncias, pensamentos e toda sorte de ações que se esforçam para nos colocar na mira de um espelho enganoso que descaracteriza e desfigura nossa totalidade, nossa potência.
Por isso, manter a integralidade é postura combativa a culpa, ou seja, a percepção de que estamos além de subcategorias que tentam nos diminuir, combate a culpa de estar insuficiente dentro de um sistema que é, constantemente, reconfigurado para não cabermos nele e que, assim, promove uma mutilação em massa. Nos mutilamos, diariamente, para caber em relações e circunstâncias e, apesar da dor de auto traição, nos fazem caminhar sob uma falsa paz de que teremos alívio pelo silêncio. Não há descanso quando a sobrevivência implica estado de vigilância para que homem nenhum nos coloque no -indigno- lugar da culpa. Subvertamos, pois.
[1] BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Nova fronteira, 2008.
[2] Para maiores detalhes, ver: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2021/06/07/pesquisa-violencia-contra-a-mulher-na-pandemia.htm
Gyovana Machado é graduada em História/UFJF, mestranda no Programa de pós-graduação na mesma universidade, associada ao Laboratório de História Econômica e Social e pesquisa capelães e capelanias no século XVIII em Minas Gerais. Militante no coletivo EIG (Evangélicas pela Igualdade de gênero), articula sua formação enquanto seminarista no Seminário teológico Rhema Brasil e suas leituras na área de História da Igreja, Teologia Feminista, entre outros.
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