As conclusões do Relatório de Capital Humano Brasileiro formulado pelo Banco Mundial são o tema de um artigo de opinião escrito pelo economista líder de Desenvolvimento Humano para o Brasil do Banco Mundial, Pablo Acosta.
No artigo publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo, o economista lembra que um dos dados levantados pelo relatório é de que ao menos metade das crianças brasileiras com 10 anos de idade não consegue ler e compreender textos. O documento ainda estima que o PIB brasileiro poderia ser até 2,5 vezes maior quando pouco ou nenhum talento é desperdiçado.
Diante de um regresso de quase dez anos no índice de capital humano causado principalmente pela pandemia de COVID-19, o Brasil só conseguirá reencontrar os mesmos patamares de 2019 em 2035. Para Acosta, não há atalhos: o Brasil precisa investir nas oportunidades desfrutadas pelas pessoas para florescer, ser e exercer suas habilidades.
Quanto talento é desperdiçado no Brasil? Não pode ser pouco. Afinal, de acordo com o Banco Mundial, ao menos metade das crianças brasileiras com 10 anos de idade não conseguirá ler e compreender este parágrafo –este que você logo vai acabar. Além disso, por volta de quatro em cada dez alunos do nono ano não adquirem conhecimentos básicos de matemática, como frações e divisões. Sem o básico, é fundamental sabermos quanto talento realmente desperdiçamos.
O Relatório de Capital Humano Brasileiro do Banco Mundial se lança neste debate e ressalta a importância de investimentos nas pessoas. Como seria se todas as crianças tivessem a oportunidade de desfrutar de educação e saúde de qualidade? Quanto capital humano uma criança brasileira deixa de obter ao longo de sua vida? Um novo velho debate que vai e volta à medida que a brisa muda de direção.
O Relatório de Capital Humano propõe uma alternativa. Imagine uma criança com nutrição apropriada, baixo risco de adoecer sistematicamente ou morrer nos primeiros anos de vida, recebendo uma educação completa e de alta qualidade até a adolescência e se tornando um (a) adulto (a) saudável. Não seria exagero argumentar que essa criança desenvolverá mais habilidades que outra em situação oposta.
Capital Humano é isso: o conjunto de habilidades desenvolvidas e acumuladas ao longo da vida. O ICH (Índice de Capital Humano) procura materializar essa ideia. O ICH compacta nutrição infantil, risco de mortalidade, educação e saúde, em um único número que mede a produtividade futura. Futura? Sim. Diferentemente de outros indicadores, sua interpretação é prospectiva: se uma criança brasileira nascida em 2019 desfrutar, ao longo da vida, das mesmas condições de saúde e educação que tinha ao nascer, sua produtividade potencial será de 60% aos 18 anos de idade. O índice de capital humano de hoje é uma fotografia da produtividade de amanhã.
Desigualdades – Mas o Brasil é um continente de desigualdades. O que é 40% de talento desperdiçado na média chega a 50%, ou até 60%, entre crianças das regiões norte e nordeste do Brasil. Já afrodescendentes e indígenas alcançam, respectivamente, apenas 56% e 52% do seu capital humano total, em face de 63% entre crianças brancas. É uma desigualdade dentro da outra. Todavia, talvez o resultado mais claro do Relatório se refere ao desperdício de talento feminino.
Se por um lado as mulheres acumulam mais capital humano que os homens aos 18 anos de idade, por outro essa vantagem evapora ao considerarmos a utilização no mercado de trabalho. Enquanto homens alcançam 56% e utilizam 40% do seu capital humano, as mulheres desenvolvem 60% do seu potencial mas utilizam apenas 32% no mercado de trabalho. Acima de tudo, mulheres afrodescendentes são penalizadas duas vezes, uma por raça e outra pelo gênero, e acabam utilizando apenas 29% da sua produtividade potencial.
O Relatório de Capital Humano pergunta “por que observamos tais diferenças entre homens e mulheres, brancos e não brancos, entre regiões, todo o tempo?”
Bem, se a educação é o pilar que sustenta dois terços das desigualdades regionais, o mercado de trabalho é a alavanca que amplia as diferenças por gênero e raça. Entre brancos e não brancos, por exemplo, a diferença no desempenho em matemática e português é um dos grandes responsáveis. Por gênero, os meninos têm taxas de abandono e repetência escolar mais elevadas e também menor probabilidade de sobrevivência até os 60 anos de idade.
COVID-19 – Com já dito, discutido e rebatido, a pandemia foi, ou está sendo, nefasta para a acumulação de habilidades. Mesmo com um crescimento maior aqui, uma ampliação das desigualdades acolá, o Índice de Capital Humano vinha crescendo no Brasil até 2019. Agora, contudo, a pandemia puxou as rédeas desta narrativa. Todos os estágios de formação estão sendo afetados.
Um brasileiro típico nascido em 2021 tende a alcançar 54% do seu potencial produtivo na vida adulta –um ICH equivalente a 2009 (ou seja, uma década perdida de acumulação de capital humano), ou 6 pontos percentuais a menos que em 2019. A educação responde por metade desta redução, principalmente em anos esperados de escolaridade; outros 30% se devem, naturalmente, à queda nas taxas de sobrevivência dos adultos (direta ou indiretamente) pela pandemia.
Recomendações – O estudo traz diversas recomendações para que o Brasil acelere a recuperação do capital humano. Visto que os impactos da COVID-19 se materializaram, em grande parte, na educação, a recuperação e aceleração do aprendizado deveriam ser prioridades nos próximos anos.
Em primeiro lugar todos os alunos têm que voltar à escola. O Brasil pode utilizar sua riqueza em dados administrativos para:
(1) monitorar os alunos que desistiram dos estudos durante a pandemia;
(2) oferecer bolsas de estudo para atrair os alunos de volta à escola; e
(3) ampliar os programas de busca ativa para reconduzir os alunos à escola.
Mas outras políticas atuais de capital humano podem ser revisitadas, adaptadas e fortalecidas.
O Sistema Único de Saúde, por exemplo, pode fazer mais para proteger crianças e adolescentes das consequências sanitárias e socioemocionais da pandemia. Como as desigualdades preexistentes tendem a se agravar, o programa brasileiro de transferência condicionada de renda pode ser ainda mais fortalecido para apoiar grupos de pessoas mais afetadas pela pandemia de COVID-19. Políticas de sucesso são uma alavanca.
“Brasis” – O Brasil precisa, antes de tudo, aprender consigo mesmo. O fato de existirem “muitos Brasis” pode ser visto como uma oportunidade, já que os municípios têm autonomia para buscar suas próprias soluções.
Compreender por que alguns municípios vêm melhorando consistentemente o capital humano e tentar replicar seu sucesso será vital nos próximos anos. O estado do Ceará e seu município de Sobral são dois exemplos conhecidos no ensino fundamental. Pernambuco e Cocal dos Alves (PI) são outros dois modelos de políticas voltadas para o ensino médio.
O relatório identificou cinco boas práticas comuns em nível local. Primeiro, todos esses municípios fizeram uso de planejamento colaborativo, com grupos de trabalho ou conselhos temáticos reunidos para resolver problemas específicos. Segundo, houve consultas públicas para monitorar e acompanhar as atividades planejadas ao longo de vários anos. Terceiro, foram contratados funcionários responsáveis pela inserção e monitoramento de dados. Quarto, os governos definiram metas claras sobre saúde e educação e todas foram amplamente divulgadas para a sociedade. Quinto, houve profunda implementação de programas federais que contribuíram para monitorar a prestação dos serviços.
Mas antes de tudo, o Relatório de Capital Humano é um convite para o debate. Um retrato do Brasil do futuro, enquanto estratégias focadas nas pessoas são postergadas. Segundo o Relatório, se crescermos como na pré-pandemia, o Brasil levará cerca de 60 anos para igualar os níveis de capital humano ao dos países desenvolvidos hoje. Só em 2035 reencontraremos os patamares de 2019. Não há atalhos. O sucesso de um país está nas oportunidades desfrutadas pelas pessoas para florescer, ser e exercer suas habilidades. O Relatório estima que o PIB brasileiro poderia ser até 2,5 vezes maior quando pouco ou nenhum talento é desperdiçado. O amanhã começa hoje.
Artigo publicado originalmente em ONU Brasil. Atualizado no dia 11/08/2022.
Pablo Acosta é economista líder de Desenvolvimento Humano para o Brasil do Banco Mundial e doutor em Economia pela Universidade de Illinois (EUA). Esta coluna foi escrita em colaboração com Ildo Lautharte, economista da prática global de Educação, e Giovanna Quintão, profissional júnior associado, ambos colaboradores do Banco Mundial.
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